Pense num circulo preto no centro de uma folha de papel branca. Considere uma folha de papel branca com um círculo preto no centro também e depois inverta a ordem da cores. A mudança desses fatores altera a percepção de como o todo funciona sob seu ponto de vista. Mas e se ao seu redor todos tivessem essas mesmas duas folhas, com as mesmas considerações sobre elas, só que chegando a percepções completamente diferentes? Esse é talvez o prisma de The Knick, dirigida por Steven Soderbergh, transparecendo ao longo de suas quase dez horas divididas em pequenos dez episódios que parecem maiores do que são, e que exibem mais do que aparentam e tornam essa história iniciada em 2014 uma das mais incríveis jóias das recentes produções de TV.
Não é novidade na televisão trazer um profissional competente e renomado de uma área próxima como o cinema e com possibilidade de utilizar muitos recursos graças a seu nome e peso. Não admira, então, que toda a experiência e habilidade sejam um acréscimo para tornar a trama uma narrativa única. Sem abertura formal, apenas uma visão em blur de um objeto, de um par de botas brancas de um cirurgião num prostíbulo chinês e a data de 1900 em seu rosto, a série apresenta o Dr. John Thackery (Clive Owen), após uma operação de placenta prévia, levado ao cargo de cirurgião chefe do Knickerboxer em Nova Iorque, ao mesmo tempo que tem de receber na sua equipe o Dr. Algenor Edwards, um cirurgião negro.
É estranho perceber que uma série de época passada no ano de 1900 tenha uma trilha composta exclusivamente de música eletrônica. Porém, a trilha é coerente tanto no ritmo frenético quanto ao ar futurístico que o seriado apresenta dentro das condições em que a medicina era praticada. Estranho, frenético e constantemente limpo. Não é difícil perceber a quantidade de pequenos planos sequência em simples diálogos expositores. A câmera se contorce procurando um ângulo para tentar se encaixar naquela situação, ressaltando a teatralidade e liberdade que os próprios atores devem possuir durante as gravações. Não estamos falando de um House, M.D do século XIX, ou um E.R – Plantão Médico rústico. Trata-se de um The Wire explorando a psique de uma sociedade, de um vício, de uma profissão muito perigosa e de todo um universo envolto em mudanças que não conseguimos acompanhar, recheado de procedimentos cirúrgicos que são incrivelmente difíceis de distinguir da realidade, principalmente pela montagem sempre funcional. Ainda que os episódios enfoquem muitas personagens, é possível observar diversos ciclos se fechando em pequenos gestos de loucura, genialidade e dor humana realizada de alguma forma.
O esforço se amplia como um todo, a ponto de não existir um momento específico ao qual esperamos chegar no fim definitivo A série se sustenta construindo um mundo através da perspectiva referencial de cada um de seus personagens. O esmero visual de cada enquadramento proporciona para a narrativa uma miragem bem realizada que esconde a sujeira que circula entre o mundo cercando as personagens. O preto e o branco retornam novamente na fotografia do próprio Soderbergh (que também assina a direção). A sala de operação (além de ser um anfiteatro para exibir cirurgias), é certamente o exemplo mais gritante de todos por sua plasticidade. Porém, é possível ver que todos os protagonistas exibem as cores preta ou branca em algum momento específico de cada episódio e, em cada um deles, intensificando o contraste com objetos e outros atores. Além de cenários que, principalmente dentro do hospital, possuem um sépia sombrio lembrando o efeito da cor preto em luz amarela. Esses elementos tornam The Knick uma pintura em alta definição em constante movimento. Porém, deixa muitas vezes em segundo plano temas abordados pela própria série, uma lacuna proposital para o público. Assim como Thackery no início do primeiro episódio, basta ficar com as pernas estendidas e assistir ao circo funcionando.
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Texto de autoria de Halan Everson.