Se o umbral existe, Stanley Kubrick nos deu uma amostra grátis disso pegando o último estágio dos círculos do inferno e colocando-o num belíssimo hotel de veraneio, trancando uma família dentro dele e vendo o que rola. Baseado no livro homônimo de Stephen King, autor de outras joias como O Nevoeiro e Carrie, O Iluminado é o décimo filme de um dos maiores nomes que Hollywood já produziu, e ajudou a divulgar, em todas as suas épocas. Grande foi o espanto de muitos quando foi noticiado, ainda na década de 70, que o diretor de Laranja Mecânica e Dr. Fantástico, ia adaptar um conto nada convencional a sua filmografia sobre o sobrenatural que pode cercar as nossas vidas, e ganhar espaço cada vez mais no plano material das coisas e das nossas relações. Após rejeitar o roteiro do próprio King, Kubrick escreve sua própria versão das consequências que a mudança de Jack Torrance, sua esposa e filho para o hotel Overlook iriam trazer para suas vidas – para sempre.
Determinado a terminar seu livro, Jack aceita se isolar por três meses de inverno rigoroso no hotel, sem saber do elemento macabro que espreita atrás de cada porta, imortal como as almas penosas de uma necrópole. Mais e mais, todos passam a ser atormentados por uma força quieta, inquieta e secreta que domina a tudo e todos, tal um vírus presente no ar, mas implacável feito uma força da natureza. Repleto de cenas icônicas, o filme se situa no limiar do real com o surreal, sensível o bastante para andar no meio fio, e nos fazer participar de um delírio alucinógeno a cada minuto que passa. A fim de estudar o gênero de horror, tal um menino que tenta assustar os amigos numa barraca contando histórias de terror, mas sob o sol do meio-dia, Stanley Kubrick aceitou o desafio de investigar o medo, um dos nossos instintos mais primitivos, através da mais refinada linguagem cinematográfica possível. Isso já faria da obra algocult, por excelência, se não fosse também seu inigualável valor a justificar seu apreço crítico.
Ademais, não se deve culpar O Iluminado por fazer uso de praticamente todos os recursos de um filme de horror, e sim, se admirar como ele recria clichês jurássicos e acha novas maneiras, ainda na década de 80, para nos assustar com o inesperado, e o incontrolável. Atemporal por ser real, e por ser humano, o clássico com um Jack Nicholson 100% psicopata e uma Shelley Duvall afetadíssima, alimentada pela loucura que consome gradativamente o marido,não aposta em sustos fáceis ou cenas fortes para ser marcante, e é isso o que faz a plateia de 2019 pensar: então por que o filme deve ser considerado tão bom, se não me faz pular da poltrona?O verdadeiro horror que Kubrick transmite aqui chega a ser mais do que imaterial, ou seja, não tem a ver com assassinos zumbis como Jason, tampouco com entidades como o palhaço Pennywise, chegando até mesmo a ser um horror invisível, já que os tenebrosos fantasmas das gêmeas do corredor também não expõe o terror absoluto que existe por trás de sua imagem, e da sua morte, uma vez que a aparição das duas é tão dócil, quanto arrepiante.
Esse horror meio hipotético, sugestivo e potencializado, aqui, só vai se tornar físico (visível) e gritante quando somos convidados a correr em pânico na claustrofobia de um labirinto escuro de gelo e sem saída, com sangue e lascas de madeira pelo ar, e quando um cadáver finalmente levanta da banheira com o corpo apodrecido para cima de nós. Muito antes disso, o que fica e constrói o valor do filme, de fato, é uma ultra elegante perturbação diabólica que o clássico consegue transmitir como poucos, superando a aparente racionalidade humana daquela família de pai, mãe e filho, este último sendo um médium iluminado que consegue ver a realidade do local, umbralina demais para vê-la e continuar são – um estado mental que, como todos sabemos, é muito frágil dependendo das condições do ambiente em que estamos inseridos.E francamente: Stephen King está certo em não gostar d’O Iluminado. Eu também não gostaria se a adaptação do meu livro fosse melhor que o meu jogo de palavras. Ah, as maravilhas do ego.