Não se deixe enganar: toda a dimensão mitológica do natal no cinema passa, exatamente, pela importância que essa data exerce, na nossa vida. Para Hollywood, a Coca-Cola e outros ases indispensáveis do capitalismo, o natal é mágico. Para nós, é uma data que transmite um período de compras sem fim, nos exageros mercadológicos de uma sociedade que só pensa em gastar e se endividar com chocottones e amigo secreto, mas que “na tela do cinema”, ela sempre simbolizou um doce escapismo tanto individual (Um Duende em Nova York), quanto familiar (Um Herói de Brinquedo). Na ficção, o Papai Noel tem consigo a união das famílias, e uma felicidade que aflora em dezembro, caracterizando assim o mito natalino das histórias cinematográficas nas gerações, a fio. Mais nelas do que na vida real, talvez, uma vez que o brilho do natal está, a cada ano que passa, mais ligado ao consumismo do que a qualquer outra coisa.
Será? Para “fugir” da nossa sina de consumidores por 120 minutos, ou menos, o que esperamos sentir em um típico filme de natal? Muito além do seu peso icônico, e boas risadas, os grandes tratados sobre essa célebre data apelam para os signos visuais da festa de fim de ano, mesmo que distorcendo-os um pouco, como no caso de O Estranho Mundo de Jack, de Tim Burton, ou ainda nos terrores Trabalhar Cansa e Krampus, ótimas pedidas irônicas à ocasião. Aos subverter a sua verossimilhança, as obras provocam e pervertem nossas ideias mais básicas sobre o natal, e ao invés de esperança, são adoravelmente imprevisíveis. De repente, nossas expectativas podem recair em um Grinch, aquele que odeia jingle bells e quer acabar com a ceia de todo mundo. Nada agrada a todos, por mais conflitante que seja desprezar as mensagens de amor e paz, do feriado. Assim, é curioso a forma como o natal é retratado, e não apenas diversificado, pela cultura pop, mas isso tem a ver tanto com a data em si, quanto pela própria lógica da adoração do consumo midiático de massa.
Sendo a celebração anual que melhor se encaixa em todos os gêneros das artes (drama, terror, comédia, aventura), também devido a força de sua simbologia universal, Hollywood em especial há muito idolatra o natal, mas sem conectá-lo a sua tônica fundamental, a religião. Isso porque a cultura pop tem como princípio esvaziar algo de sentido, e massificar essa ideia para o maior número de pessoas (e se tem algo que americano é mestre, é nisso). Desta forma, ficam intactas as mensagens do momento, e sem fazer alusão a Jesus Cristo e outras figuras emblemáticas. Ademais, ótimas animações como Klaus e Rudolph homenageiam o Papai Noel, tendo nele a representação de um ser quase que “sobrenatural”, em que nele reside a dimensão do mito, ou melhor, do período que personifica (Cristo). Um bom velhinho, generoso e incapaz do mal: Hollywood vê no barbudo a dignidade de uma época, vencendo barreiras religiosas em prol de uma audiência sem limites.
O natal, como quase tudo, virou mais um produto, um jogo de itens, e apenas o enredo de um filme amplamente prestigiado conseguiu fugir à noção capitalista – mesmo fazendo parte do showbusiness. A importância de A Felicidade Não se Compra para com o natal, está enormemente acima das óbvias qualidades artísticas do filme de Frank Capra. Já em 1946, Capra, mestre da Era de Ouro, conseguiu encapsular de forma poderosa que a vida, e o valor de um homem e a sua comunidade, não pode estar à venda, em uma trama que envolve o natal como um momento, quase que delirante, de redenção a essa vida totalmente controlada pelo dinheiro que os americanos (e nós) vivemos. Mesmo pela ótica da fantasia, do sonho, A Felicidade Não se Compra faz-se uma fábula imbatível sobre o anticapitalismo, explorando em imagens maravilhosas a imensidão de princípios humanitários que não podem ser liquidados na black friday.
Com um juízo de valor parcialmente esvaziado, em que quarto nós guardamos a essência do natal? Em qual baú? Resposta: nenhum. Suas tradições seguem suportadas, e resguardadas pelas compras de fim de ano, caso contrário o natal já teria virado, há muito, um Dia do Índio: ninguém comemora, mas todo mundo acha legal colocar um cocar na cabeça, como se fosse uma máscara de carnaval. Sem o capitalismo, o natal no século XXI seria esquecido (exceto por grupos religiosos), destituído do grande apelo da festa. A festa dos presentes, em primeiro lugar, ainda que no cinema e na publicidade suas mensagens sejam preservadas, em troca do lucro. Se n’A Felicidade Não se Compra, o natal serve para inspirar James Stewart a encarar a vida e a família com coragem, e menos lamentação, na dimensão paralela a ficção, o natal ainda pode servir para encerrar longas brigas familiares, longas distâncias, e reatar ou reafirmar os laços mais importantes das nossas vidas, como seres pensantes e emotivos que somos.
O natal vive, existe, e não apenas como memória ou experiências de faz de conta. E muito por causa do fascínio que há nele, seja pelas férias no trabalho, seja pelas suas luzes no fim do ano. Luzes que iluminam o nosso presente após tantas batalhas vencidas ao longo dos meses, e o nosso caminho aos eventos desconhecidos que estão por vir, imitando a arte, e vice-versa. O futuro das histórias natalinas no cinema segue concordante aos caminhos realistas do mundo, valendo-se das liberdades que a arte tem para, ora simbolizar as tradições típicas dessa época pela fantasia e aventura, ora reverenciando os contornos reais da nossa vida pelo drama e comédia.
Agindo como uma defesa acessível ao lado idílico, humanitário e esperançoso do natal, o cinema (historicamente mais atraente às massas que os livros) reproduz o espírito natalino entregando escapismo, e garantindo com isso boa parte da longa vida, da magia revitalizadora, e da perpetuação da energia (ainda que panfletária, hoje em dia) do natal. Porque de Grinch, já basta a realidade.