A leitura de um manuscrito – no caso, um livro – é para Eduardo Galeano um exercício tão raro quanto o encontro de uma mensagem engarrafada, jogada ao oceano, com mínimas chance de ser cooptada por alguém. Passeando pelos territórios latino-americanos de um modo coloquial, As Veias Abertas da América Latina é um exercício de estudo do autor, que exibe algumas das figuras mais importantes no continente e que comumente são esquecidas, incluindo o sistema educacional brasileiro.
O início da narração é lúdico, passando pelos percalços de Colombo e pela inspiração de Marco Polo, em terras onde ainda não haviam visto a dita civilização dos brancos/europeus, os “donos do mundo” daquela época. O desejo por bens perecíveis, como noz-moscada, gengibre, cravo e canela era enorme, só não superando o desejo por metais preciosos.
A aura em volta dos colonizadores ganhou uma interpretação semidivina, graças a uma terrível mistura, na qual se juntou o misticismo de alguns locais e o modo como os exploradores pousaram naquelas terras habitadas. O “endeusamento” favoreceu o trabalho de escravização, invertendo o que deveria ser pautado pela empatia e transformando isso, de modo vil, em uma obediência sem discussões ou critérios. Os “paladinos” que desfilavam pelos Eldorados de Potosí (atual Bolívia) e Cuzco (Peru), tinham na ostentação um dos modos de coagir quem quer que fosse, com lendas que atravessaram as gerações ao afirmar que até os pisantes de seus cavalos eram de prata. Havia o bochicho que, se fosse somada toda a prata que havia sido transportada de Potosí à Espanha, daria para “fazer uma ponte de prata, desde o cume da montanha até a porta do palácio real do outro lado do oceano. Os exorbitantes lucros dos espanhóis são expostos em números gritantes, que se tornam ainda mais aviltantes e dignos de revolta quando se é analisada a condição miserável em que os colonos subsistem, sem qualquer sinal de retribuição às especiarias que migravam e atravessavam o oceano.
O comércio de caráter moral discutível se agravou com o comércio de mão de obra aborígene, tendo na justificativa religiosa da “ausência de alma” dos índios a maior prerrogativa do comportamento. Mesmo após o gradual processo de desescravização, permaneceu um residual e incômodo modo de encarar a população indígena, com um claro desprezo racial pelos que permaneceram no seu país e constituíram família e vida. Mesmo a classe que não a explorava os via com bons olhos, igualando aqueles que deveriam ser os herdeiros legítimos daquelas terras e de seus bens a párias, objeto de rejeição do povo que deveria ser seu cúmplice.
A primeira contribuição de contos brasileiros ocorre ainda pela corrida de exploração de metais, exemplificando como a febre do ouro em cidades de Minas Gerais deu vazão ao torpor relacionado ao regime escravagista, e a quanto os servos de pele negra entretinham os senhores de engenho, fosse por trabalho braçal, como em apostas esportivas, ou por mulatas que se prostituíam, se entregando a inúmeros prazeres proibidos pela religião, o que não impedia sequer a igreja de lançar mão do dinheiro e benefícios provenientes de mercado de escravos. O lucro que o império britânico e a Holanda faziam com o ilícito tráfico de carne negra só não era maior que o enriquecimento via acúmulo de ouro e especiarias que estes faziam. Pelos anos 1700, o transporte de metais favoreceu demais a existência econômica da Inglaterra, lotando suas fileiras.
O apogeu da América Central é muito bem retratado, primeiro ao exibir os contornos do imperialismo norte-americano, ao considerar a parte baixa do continente como seu território – nem o “justo” Lincoln fugiu das comparações – até a segunda independência, o grito extravasado pelas quebras das amarras do segundo explorador, o país que não os colonizou, mas que prosseguia fazendo dos seus bens, a base barata de seu mercado.
O modo como as antigas colônias sofriam exploração é mostrado em detalhes, com número precisos, que assustam o público pela forte crueldade dos países matrizes. O autor não deixa qualquer dúvida em relação ao seu posicionamento político, explorando ao máximo os defeitos que o culto ao capital gera nos países subdesenvolvidos, reforçando a ideia de que o sistema falhou mais do que a implantação do socialismo.
Galeano inicia um minicapítulo afirmando que qualquer chance de desenvolvimento sustentável foi completamente aniquilada pela chamada guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, onde Brasil, Argentina e Uruguai, apoiados financeiramente pela Inglaterra, praticaram o genocídio no país afrontado. O presidente Francisco Solano Lopez resistiu até onde conseguiu, tendo de se entregar para que o morticínio de homens não fosse tão grande. Os motivos do embate são discutidos até hoje, com uma grande adesão de teorias da conspiração; no entanto, o país em frangalhos após o confronto é um fato irrefutável, pois até rodízio de genitores masculinos foi uma das atitudes emergenciais tomadas, dada a quantidade de “machos” assassinados.
A declaração de Simon Bolívar sintetiza toda a obra de Eduardo Galeano: “Nunca seremos afortunados”. A sina dos latino-americanos não era causada por caprichos do destino, mas sim por uma intensa e desonesta exploração de suas riquezas naturais e mão de obra, que geraram um povo cujo engajamento varia de país a país, tendo no Brasil talvez o povo mais alienante e pouco combativo ao comportamento opressor e recrudescido, refletido até nos resultados das eleições de 2014, com a elevação popular de defensores do regime ditatorial militar instituído dos anos 60 a 80.
O autor usa suas últimas páginas para grafar a diferença entre as colonizações de exploração, predominantes no sul dos EUA e em todo o continente latino, e as de habitação, na parte dos Estados Unidos que dominou todo o território, não esquecendo claro, dos aspectos herdados de um comportamento fascista, que ignora ferozmente aspectos de cunho social para supervalorizar o capital. Para Galeano, o legado a seguir na América Latina era sim o social, na tentativa de frear o alastramento do “progresso”, que tem suas aspas justificadas pelo corrimento também da miséria nos pedaços de terra conquistados pelo primo rico, localizado mais ao norte.
A intenção presente em As Veias Abertas da América Latina de discutir fatos normalmente ignorados pela história oficial é alcançado. O fato do livro ter sido proibido de circular no Uruguai – país do autor – Argentina e Chile causaram no escritor uma alegria tremenda, de que suas palavras não foram emudecidas, e a certeza de ser a presunção, dita pelos soberanos a respeito do tom narrativo, findar-se na verdade como uma semente de esperança de revidar o golpe que o povo recebia por parte dos que secularmente o agrediam, claro, contado de uma maneira não acadêmica e sim poética, fluida e dramática.
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