Um dos conceitos mais utilizados e trabalhados pela História de maneira geral é o da memória. De forma comum, memória pode ser interpretada apenas como a lembrança de um determinado fato, evento ou situação qualquer, porém é muito mais complexa. A memória contém a sua própria história. Perceba que a forma como você se lembra de alguma coisa muda com o passar do tempo (o fim de um namoro, triste no início, mas até comemorado com o passar do tempo, pode ser um exemplo simples e efetivo). E há também a construção de uma memória, quando um grupo conta como as coisas foram, ou como esse grupo determina como um dado evento será contado ou lembrado pela posteridade, traduzindo na ideia de memória social. Ótimo, mas qual a relação disso tudo com a belíssima obra de Rutu Modan?
A história como um todo gira em torno de como as memórias foram construídas e são reconstruídas pelas personagens dentro da narrativa. A sinopse, bastante simples, narra uma senhora judia, Regina, que vai com a sua neta Mica para Varsóvia, onde haveria uma propriedade em seu nome para ser reivindicada. Na verdade, esse é apenas o pretexto para que toda a trama aconteça. Mais do que procurar uma propriedade, Regina foi ao encontro de seu passado, mostrando como, apesar de décadas longe da capital polonesa, muito dela ainda mora naquele lugar. E também mostra como a neta passa a construir as suas próprias memórias e lida com o passado (des)conhecido de sua própria família.
A partir daí trata-se de uma verdadeira aula de sensibilidade sobre como trabalhar o conceito de memória, uma vez que o autor busca retratar memórias locais e coletivas, como a retomada de Varsóvia dos nazistas, ou a lembrança de quando eles invadiram a cidade (uma passagem muito interessante, pois há uma representação dos nazistas aprisionando judeus, uma forma de não deixar a memória sobre o terror daqueles dias morrer). E também memórias pessoais da senhora, que se reencontra com pessoas e lugares importantes para o seu passado e de como esses encontros e rememorações fazem com ela pense o passado e o presente. Destaque às personagens, bastante críveis e próximas da realidade de qualquer um. Quem tiver um cunhado ganancioso ou uma avó teimosa se identificará de pronto.
Além disso, é muito interessante como parte da cultura judia é tratada pelo autor, ou como os eventos e festividades da própria cidade são representados, fazendo com que o leitor se inteire de lugares e culturas que são muito distantes da dele, e também perceba que a Segunda Guerra Mundial não se resume apenas a grandes batalhas ou ao Dia D, mas que os eventos relacionados a ela geraram consequências e percepções que são variadas e bastante ricas. Passagens sobre preconceitos e como um povo ou cultura vê outros engrandecem ainda mais o quadrinho. Mas não se confunda, não se trata de uma História de guerra, mas de memórias e vidas de pessoas.
Assim, A Propriedade se trata de uma leitura obrigatória para aqueles que gostam de gibis que não ficam apenas no mundo dos heróis ou mangás, com mulheres em posições estranhas. Uma ótima indicação para que as pessoas possam sair desse mundo mais restrito da indústria de HQ. A obra fará com que o leitor perceba que a propriedade não se trata de algo meramente físico, mas que memórias e lembranças, e a forma como as pessoas as utilizam, também são propriedades das pessoas. Leitura mais do que indicada.
Compre aqui: A Propriedade – Rutu Modan
–
Texto de autoria de Douglas Biagio Puglia.