E como num dos deliciosos contos de Roald Dalh, autor de Matilda e o vergonhoso O Bom Gigante Amigo, eis um filme que não trata uma história excepcionalmente infantil de forma fraca ou como apoio para um exagero de efeitos especiais. Temos então o jovem Elliot, espécie de Mogli que vai parar na floresta após um incidente com seus pais. Lá, olha para cima e se depara com seu salvador de 25 metros de altura, 10 metros de cauda e 15 de asas, essas incrivelmente finas para aguentar o corpo do bichano, um dragão. Dentuço, predador, mas com um olhar âmbar irresistível de cão arrependido, no fundo do quintal onde os intolerados, por alguma razão, são mantidos desde sempre.
Um roteiro que, facilmente, poderia ser o de um filme entre os anos 70 e 90 reprisado em loop na Sessão da Tarde, mas trata-se de um semi-invisível filme de 2016, por mais incrível que pareça. Trata-se, na verdade de um fenômeno nostálgico, desses que nunca perdem o brilho e não se camuflam nem como ‘conservadores’, nem como ‘revolucionários’. Pode-se dizer, ainda, que isso se dá pelo acolhimento à novas tecnologias para contar uma fantástica fábula dessas, já que sem fabulosos efeitos seria impossível recriar (na escala almejada) um dragão peludo cor-de-musgo, o céu onde voa, livre, e sua realidade fabulesca em paralelo com a de seus amigos e algozes bem realistas. Porém, a questão não é essa.
Embarcamos na história, pois a intervenção aqui de um mito vivendo no mundo real, e contemporâneo, sofre uma bela releitura totalmente inofensiva numa ‘lavagem Disney’ do mesmo feijão com arroz de anteontem, já requentado (sob arquétipos familiares narratológicos) numa porção de ensejos anteriormente já explorados, sobre como a magia ainda pode interferir e remodelar o cotidiano de qualquer cultura, lugar, e em qualquer faixa de tempo. E daí que os efeitos especiais sejam iguais aos de Eragon, de 2005, e muito inferiores ao Smaug de O Hobbit? Eis aqui um êxito que ambas as produções não conseguiram tomar pra si, fazer o coração do robô pulsar. E nisso, justiça seja feita, a Disney humilha a concorrência desde que lápis e papel eram a única maneira de transmitir a imaginação que nunca nos abandona, mesmo longe da infância ou daquela janela do ônibus.
Como já foi apontado antes em outros tratados críticos meus, no site, qualquer significado mais aprofundado sobre ‘Mito’ na Terra de 2017 (ou sabe-se lá o ano chinês e judaico que nos encontramos) já nos deixou faz tempo; inocência virou burrice e a magia, esta já desacreditada por ratos de laboratório e seus códigos binários. Um dragão habitando hoje nosso planeta, mesmo escondido na floresta mais distante é tão impensável que dói, mesmo que embora não saibamos nem 40% dos segredos que o oceano esconde, mas não seria “Acreditar” o verbo que a Disney sempre mais promoveu e vem nos ensinando, incansavelmente, junto à vassouras, super-heróis e príncipes encantados? A gente não acredita mais no que não pode ser comprovado, essa época já passou, enquanto a ciência tenta provar que o Homem de Ferro pode sim existir no mundo real, e Deus seria apenas uma partícula a ser decodificada boiando numa convidativa infinidade interestelar.
Talvez por isso que o filme foi desacreditado por boa parte do público, e merece ser descoberto num domingo à tarde. Simples dos pés à cabeça, e grande nos significados e na moral tímida que ostenta – tal sua criatura mitológica com jeito de cachorro domesticado -, Meu Amigo, o Dragão aprimora a cada cena a mistificação e o brilho da situação, sem jamais modernizar o conto a ponto de racionalizar a existência do fantástico, do elemento espetacular de vários carros correndo atrás de um bicho descomunal que voa, voa alto e cospe fogo no alto de uma ponte; no final das contas, assistimos tudo através da ótica infantil e despretensiosa do menino Elliot, tratando o monstro seja no chão ou no céu banhado pela aurora da mesma forma que por ele, também é tratado: Seu melhor amigo de infância. Um filme de infância, em primeiro lugar.