A coroa de espinhos e o rastro de sangue que ilustram o pôster do filme já adiantam ao espectador o que ele pode esperar do terceiro filme de Mel Gibson como diretor. Lançado em 2004, após uma pré-produção desacreditada, A Paixão de Cristo foi recorde de bilheteria ultrapassando os US$ 600 milhões de dólares, mas dividindo a crítica, que ora o recebeu como um diferente olhar catártico da crucificação, definindo o parâmetro escolhido por Gibson ao narrar a história, ora o interpretou como um retrato violento em demasia desse episódio da vida do Filho de Deus.
A história mostra desde a oração reunindo Jesus (Jim Caviezel) e os apóstolos no Jardim de Getsêmani após a Santa Ceia, seguido da traição de Judas Iscariotes (Luca Lionello), até a captura de Cristo pelos sacerdotes, seu julgamento, condenação e penitência, crucificação, e, por fim, a ressurreição. Portanto, toda a história do filme compreende o período das 12 horas finais da vida do Messias. Através de flashbacks, são mostrados outros momentos de sua vida, como o Sermão da Montanha, e outros em que aparece ainda criança e depois adulto com sua mãe, Maria (Maia Morgenstern). No entanto, o foco é apresentar o sofrimento de Jesus após ser capturado, julgado e condenado, momento que traz o choque devido à abordagem crua do flagelo de alguém além da projeção santificada, mas acima de tudo, humana.
Desde o início da obra, a violência se faz presente. No Jardim de Getsêmani, Cristo pressente a figura de Lúcifer e expulsa o mal matando uma cobra, símbolo negativo no Cristianismo e em outras culturas, visto que é um animal traiçoeiro e venenoso. Mas é na prisão que a tortura de Jesus garante o seu ápice. A injustiça que cometem contra a sua vida ultrapassa os limites físicos. Jesus é maltratado de tal forma que, apesar de o castigo ser filmado de maneira cruel e mundana, sua figura nos passa a crença de que o homem açoitado tem uma força excepcional que vai além do domínio terreno. Hiperbolizando a violência, como em uma narrativa sobre um momento de fato violento, o resultado são cenas que se aproximam de uma situação vivida por qualquer um de nós, como se fôssemos testemunhas daquela violência e quase nos achássemos pedindo para Cristo ser poupado, da mesma forma que Simão de Cirene (Jarreth J. Merz) grita aos torturadores.
O título do filme pode confundir, visto que a palavra “paixão” em geral carrega uma carga positiva. Paixão, do latim passio, refere-se a “sofrimento”, “sofrer”. Só muitos séculos depois, “paixão” passou também a designar desejo, apreço e adoração. No sentido original da palavra, o filme captou a essência. São duas horas e sete minutos de martírio, não só ao Cristo, mas também a seus espectadores. Filmada todo em latim e aramaico, o que rendeu elogios de especialistas nas línguas faladas entre os judeus e romanos da época, a obra impressiona pelo retrato das escrituras bíblicas. A representação de Cristo é bastante extraordinária: alguém que foi trazido para a o mundo para levar uma mensagem e, como parte de um desígnio, deixado ao Cálice – ou sofrimento – que no Jardim anteriormente previra.
Apesar de utilizar menos o reforço da direção de arte, em comparação com seus filmes anteriores, o foco na expressão de Caviezel a todo o momento indica um recurso cinematográfico usado pra representar a decepção de Cristo com a humanidade, como se, vendo-o através dele, o espectador se redimisse pelos seus pecados e os dos agressores.
A Paixão de Cristo também lidou com críticas envolvendo antissemitismo. À época, houve quem dissesse que Gibson responsabilizou os judeus pela morte de Jesus em razão da maquiavelização dos sacerdotes do Sinédrio e as pessoas presentes no julgamento em contraposição à humanização de Pôncio Pilatos (Hristo Shopov), que lavou as suas mãos no julgamento. No entanto, diante da controvérsia, é clara a atuação do roteiro em explorar a crueldade dos soldados romanos na tortura, assim como é fato que Maria, Madalena (Monica Bellucci incrivelmente apagada), Simão, Santa Veronica (quem, na Via Dolorosa, ajuda Jesus com um lenço para limpar-se), e o apóstolo João, são todos hebreus que se compadecem em algum momento da crucificação. Assim, não há uma classe apontada no filme como a culpada por tal injustiça. Todos têm sua parcela de culpa, desde o braço amigo que o traiu até o governante que pune um inocente e liberta um assassino para manter a paz em suas terras.
Polêmicas à parte, o filme consegue com eficiência cumprir o prometido por Gibson em sua ideia original: retratar os últimos momentos de Cristo como detalham as histórias bíblicas e outros relatos de época, com a violência da filmografia do diretor aliada à estética da purificação, através de um filme honesto, belo no horror e sem amarras.
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Texto de autoria de Karina Audi.