Talvez poucos temas atuais sejam mais polêmicos no Brasil do que o aborto. Principal debate das eleições de 2010 – fato que deve se repetir em 2014 –, o assunto divide opiniões de especialistas em saúde pública, defensores do direito das mulheres e religiosos, cada um defendendo seus argumentos à sua maneira.
Carla Gallo, em sua estreia como diretora, traz uma nova perspectiva para o debate com o documentário O Aborto dos Outros, lançado em 2008. O trabalho deixa um pouco de lado a panfletagem política e aborda uma visão mais intimista, com mulheres prestes a fazer um aborto e compartilhando anonimamente a dor da violência sofrida que resultou em uma gravidez, e como agora deverão enfrentar outra violência, a de lutar para não carregar uma criança indesejada para o resto da vida.
Essa perspectiva se mostra acertada conforme os depoimentos vão mudando, pois cada mulher está ali realizando um aborto por uma razão específica. Desde um estupro na rua até casos de violência doméstica, ou mesmo gestando fetos com má-formação, as grávidas permitem em seus depoimentos, cada qual com entonação diferenciada, fazer perceber a dúvida em algumas e a certeza em outras. Também nos fazem sentir pequenos frente ao turbilhão de pensamentos que ocorre na mente dessas mulheres. Cada caso se torna tão específico que, como espectadores, ficamos com vergonha ao ponto de pensarmos bem antes de emitir uma opinião.
A escolha da diretora em não apresentar um narrador contribui para aumentar o impacto de cada depoimento, pois em momento algum as mulheres são direcionadas a responder perguntas prévias, pelo contrário, expressam o que estão sentindo. Cada lágrima é real. Cada ferimento é real. Tudo é real. E a atmosfera lúgubre, branca e sem música nos passa uma sensação de frieza nos corredores hospitalares, mostrados em alguns casos, colocando-nos ao lado daquelas vítimas, fazendo-nos presenciar uma pequena parcela daquele vazio. Naquele ambiente de sofrimento, não importam os políticos homens que nunca vão engravidar, ou os pastores e padres que se importam com vidas apenas enquanto elas estão dentro de úteros. Naquele momento, a mulher carrega para si todo o fardo de abrir mão de um filho. E o filme mostra claramente o quanto é insensível quem acredita que esse processo é simples.
O longa, além da abordagem intimista, por vezes também adota um tom político, porém focando o principal argumento, que é a mulher e seu corpo. No último depoimento, proferido por uma mulher pobre e negra, que faz um aborto e o explica com uma eloquência e firmeza surpreendentes, o racismo e machismo da sociedade brasileira ficam escancarados, principalmente quando ela diz que, ao ser denunciada, fica algemada no hospital por uma semana e depois presa por mais uma.
Ao final, os únicos momentos claramente políticos são os de depoimentos de médicos e juristas apontando que a descriminalização do aborto é a única forma de garantir melhores condições de saúde para as mulheres do país, ao citar uma estatística que diz que entre 70 e 80 mil mulheres morrem todos os anos devido à realização de abortos sem segurança — sendo que 95% das mortes acontecem em nações em desenvolvimento, caso do Brasil. Ou seja, milhares de mulheres morrem de uma forma trágica que poderia ser evitada. E com essas vidas ninguém se importa. Estamos vivendo ondas de linchamento e justiçamentos populares nas ruas do país, mas não podemos nos enganar ao achar que isso é algo novo. A violência, aqui, existe desde sempre. Está em nosso DNA social. E a proibição do aborto é mais um desses linchamentos silenciosos aos quais submetemos as mulheres, em especial as pobres.
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Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.