Embora o status icônico dos protagonistas do MonsterVerse (o universo compartilhado de monstros produzido pela Legendary Pictures e distribuído pela Warner, centrado em Godzilla e King Kong), com os dois filmes lançados até o presente momento, Godzilla (2014, dirigido por Gareth Edwards, de Monstros, Rogue One) e Kong: A Ilha da Caveira (2017, dirigido por Jordan Vogt-Roberts – The Kings of Summer), o cinema ainda não testemunhou abalos à altura de suas carreiras culturais. E o rastro deixado por ambos, embora não seja nada desprezível nas searas financeiras e culturais, não corresponde às expectativas mastodônticas dos estúdios e dos fãs, ansiosos por um afago na forma de blockbusters a personagens que antes só existiam nas produções originais da japonesa Toho ou em ocasionais (e frequentemente questionáveis) incursões hollywoodianas em busca de monstrodólares. A partir do final de maio deste ano, os espectadores poderão conferir o resultado da mais recente empreitada na mitologia dos ancestrais “Titãs”, em Godzilla II: Rei dos Monstros – e é possível que enfim tenhamos um filme mais naturalmente integrado ao estilo das produções da Toho, e mais digno das figuras portentosas que ostenta em trailers e artes relacionadas.
No pontapé inicial do universo dos monstros, em 2014, houve uma preocupação louvável com os sensos de escala e proporção das criaturas em relação à existência humana e suas estruturas, apesar de um deslize básico em não explorar mais o maravilhamento e o terror da humanidade em descobrir os habitantes mais grotescos e imponentes do planeta (e explorar demais certos desdobramentos narrativos que pouco acrescentavam à costura geral da projeção); Kong, lançado há pouco menos de dois anos, resolveu em parte esta abordagem, mas ainda assim não apresentou o MonsterVerse em sua plenitude (e só amarrou marginalmente as pontas que ligam um filme a outro e os estabelece no mesmo universo — usando a cartilha do MCU, abrindo o jogo em definitivo somente em uma sequência pós-créditos). O benefício de tudo que foi tentado e realizado em duas produções bem distintas (Godzilla mais solene e reverente; Kong mais fantástico e menos impessoal) pode tornar o novo Godzilla, pela cabeça de Michael Dougherty (Contos dos Dias das Bruxas, Krampus), uma obra mais direta E ainda mais reverente, sem a necessidade de ancorar tanto as ações em descobertas e situações de verossimilhança, uma vez que a ideia agora é justamente a de dar aos monstros o espaço necessário pra que surjam das entranhas da terra e tomem o palco principal.
A escolha de um diretor como Dougherty, cujos filmes anteriores apresentaram horrores suburbanos e familiares com bastante casualidade, não é à toa; transformar a franquia de vez em uma bonança de criaturas mitológicas ultra-poderosas tende a reduzir a relevância do fator humano, algo impensável pros padrões hollywoodianos mas amplamente ambicionado por fãs mais empolgados. O elenco do filme traz figuras queridas da cultura pop, como Vera Farmiga, Millie Bobby Brown, Charles Dance e Kyle Chandler (todos nomes bem ambientados em produções de gênero e fantasia no cinema e na televisão), mas os elementos que ancoram o interesse do público, desde o anúncio do projeto e ainda mais após a divulgação de seus trailers e cartazes, são obviamente os monstros: King Ghidorah, um tradicional e mortífero oponente de Godzilla; Mothra, uma valorosa aliada do Rei dos Monstros em momentos cruciais; Rodan, um daikaiju também tradicional e de natureza um pouco questionável; além, é claro, de Godzilla e de outros nomes supostamente presentes na vindoura exibição.
Tantos monstros denotam uma mudança salutar na filosofia por trás de alguns blockbusters contemporâneos: a perda do receio de fazer filmes realmente fantásticos, sem a necessidade quase obsessiva em prendê-los ao chão e tentar ancorá-los em uma realidade *compreensível* (do ponto de vista de alguns produtores e profissionais da área). Uma mudança certamente influenciada pela essência dos filmes da Marvel posteriores ao primeiro Vingadores (e a subsequente aceitação destes pelo público – em especial na forma de rechonchudas bilheterias), mas que não foge das raízes dos monstros da Toho. À exceção do até hoje reverenciadíssimo Godzilla original, de Ishiro Honda, os kaijus do estúdio japonês que se adonou deste nicho cinematográfico sempre foram caracterizados por investidas cada vez maia fantásticas e simbólicas no cinema, e uma mitologia crescente cada vez mais rica e espraiada, às vezes até mesmo descentralizando os filmes da figura do Godzilla com resultados interessantes e curiosos – uma abordagem que engrandece os planos do MonsterVerse atual e possibilita eventos dignos de quem ainda espera pela mesma grandiosidade da franquia japonesa aliada aos valores de produção que Hollywood tem a oferecer.
Godzilla II: O Rei dos Monstros talvez não tenha a elegância estética (ironicamente) contida de seu predecessor, ou mesmo a diversão nada melodramática de Kong – A Ilha da Caveira (convenhamos, os fãs amam qualificar monstros como Ghidorah como “eventos em nível de extinção” e pensar nas consequências fictícias de suas aparições e confusões com Godzilla & cia.), mas é um forte candidato a se tornar (enfim) a demorada materialização das criações da Toho em meio a Hollywood. Que se aventure em entregar uma obra que permita aos horrores biológicos deste universo os holofotes, proporcionando uma quase inédita (no Ocidente) sensação de diminuição cósmica diante das cataclísmicas personagens da saga japonesa de alegorias científicas e arqueológicas, é uma conquista e tanto; uma capaz de deixar as marcas profundas que o distanciamento dos filmes anteriores do legado da Toho impedia.
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Texto de autoria de Henrique Rodrigues.