“Meu irmão é adotado, mas não posso e não quero dizer que meu irmão é adotado.”
(pag.9)
A frase que abre o livro já dá ao leitor uma boa ideia do que está por ler e instiga nele a curiosidade de entender qual a motivação do narrador para se expressar dessa forma. O autor, filho caçula de um casal de psicanalistas, durante todo o livro “pratica” a dicotomia entre contar a história do irmão adotado e não querer explorar o fato de que ele seja adotado. Mas é o próprio irmão que dá ao narrador a missão de escrever sua história:
“(…) enquanto me empenhava em decifrar tudo aquilo que eu não entendi e jamais seria capaz de entender, meu irmão soltou a frase que não pude esquecer, a frase que me trouxe até aqui: Sobre isso você devia escrever um dia, sobre ser adotado, alguém precisa escrever.”
(pag.124)
O livro explicita principalmente a obsessão do autor com origens, talvez justificável por ser parte de uma família exilada no Brasil, fugida da ditadura na Argentina. Os capítulos alternam-se entre questionamentos sobre a origem do irmão – na tentativa de entender os motivos de ele ser como é – e a busca pelas origens de sua família – na tentativa de conhecer onde e como viviam antes de fugirem de seu país. O autor vai do macro, o drama de uma país e de um povo sob jugo de um regime militar, ao micro, o drama particular de uma família exilada cujo filho mais velho se ressente por ser adotado.
Percebe-se no texto o cuidado do autor na escolha das palavras, o trabalho não apenas no conteúdo mas também com a estética, com a sonoridade, com o ritmo. Longe de ser pedante, Fuks consegue, mesmo sem ser coloquial demais, dar uma fluidez ao texto que torna a leitura extremamente aprazível. Adicione-se a isso os capítulos bem curtos e tem-se em mãos um page-turner, mesmo que o gênero do livro não seja um daqueles que comumente se encaixa nessa denominação.
Em um dos capítulos, o narrador comenta sobre um nome que nunca tinha ouvido em casa, Marta Brea. Descobre, então, que era uma colega de trabalho de sua mãe. Mais que colega, era amiga e confidente. Um dia “removida” do hospital em que trabalhava e jogada num camburão sem placa. E, como era de se esperar, ninguém nunca mais soube nada sobre seu paradeiro. A chegada de uma carta muda isso, e Fuks descreve bem aquela sensação de não saber de algo sobre um acontecimento, cujas lembranças depois de um tempo aparentemente se perdem, e de repente descobrir o que realmente houve. Uma reorganização de nossas memórias face a novas informações.
“Só quando recebeu aquela carta, trinta e quatro anos mais tarde, a carta que convertia Marta Brea em Martha María Brea, vítima do terrorismo de Estado da ditadura civil-militar, jovem psicóloga cujos restos agora identificados ratificavam seu assassinato em 1o. de junho de 1977, sessenta dias depois de seu sequestro no hospital, só quando recebeu aquela carta pôde vasculhar em seu íntimo as ruínas calcificadas do episódio, pôde enfim tocá-las, movê-las, construir com o silêncio das ruínas, e com seus traços deformados, o discurso que proferiu em sua homenagem.”
(pag.78)
A precisão com que descreve sentimentos familiares ao leitor, sensações que por vezes nem sabemos que há como expressar em palavras, é cirúrgica. Por assim dizer, quase invasiva. Dá ao leitor aquela sensação indescritível de o texto ter sido escrito especialmente para ele. Indescritível, aprazível e incômoda ao um mesmo tempo.
Assim como Sebastián, o narrador, é e não é Julián, o texto todo é repleto de dualidades. Há ao longo do livro inúmeras oposições entre aquilo que é e o que poderia ter sido, ou que o narrador sonha que tenha sido. O uso da metalinguagem é recorrente quando o narrador fala do livro sendo escrito e sendo lido, sendo construído e desconstruído de acordo com o fluxo narrativo, de acordo com o que o autor quer mostrar (ou não) ao leitor.
“Só quando já partiram meus irmãos, só quando já passamos à segunda xícara de chá, é que o tom do encontro se faz mais grave. Na noite passada meus pais leram o livro que lhes enviei, enganaram a insônia com estas páginas, por algum tempo estiveram depurando o que poderia comentar, como lidariam com esta situação um tanto exótica. É claro que não podemos fazer observações meramente literárias, ambos ressalvam como se quisessem se desculpar, durante toda a leitura sentiram uma insólita duplicidade, sentiram-se partidos entre leitores e personagens, oscilaram ao infinito entre história e história. É estranho, minha mãe diz, você diz mãe e eu vejo meu rosto, você diz que eu digo e eu ouço minha voz, mas logo o rosto se transforma e a voz se distorce, logo não me identifico mais. Não sei se essa mulher sou eu, me sinto e não me sinto representada, não sei se esses pais somos nós.”
(pag.134)
É principalmente nesses trechos que a dualidade da narrativa é reforçada, literalmente – ou quase. E é principalmente nesses momentos que a linha entre biografia e ficção se torna ainda mais tênue.
“Eu sei, nós sabemos que é um livro saturado de cuidado, carregado de carinho, eu sei que a duplicidade não se restringe a nós, que o livro é duplo em cada linha.”
(pag.137)
Pouco importa o que é autobiográfico e o que é ficcional. Importa é que Fuks consegue mesclar ambos sem que o leitor seja capaz de distingui-los e é essa ambiguidade de conduz a narrativa e cativa o leitor.
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Texto de autoria de Cristine Tellier.