A chamada na capa é um chamariz e tanto. Afinal, Garota Exemplar, de Gillian Flynn, é um dos melhores thrillers que li nos últimos meses. E A Garota no Trem não decepciona. É parecido, mas é diferente, e esta é uma grande vantagem, pois o inesperado da trama chega ao leitor de outra forma. E como se não bastasse a referência a Garota Exemplar, George R.R. Martin (sim, ele mesmo – aquele senhor que está nos devendo os volumes finais de Game of Thrones) indicou a leitura.
Todas as manhãs, Rachel toma o trem das 8:04 de Ashbury a Londres. Conhece o trajeto de cor, sabe os pontos em que o trem diminui a velocidade, e anseia pela parada num dos sinais, em que observa determinada casa e seus habitantes, um casal desconhecido a quem ela batiza de Jess e Jason. Numa das manhãs, presencia uma coisa que a faz mudar de opinião sobre a vida perfeita que ela creditou ao casal. E quando Jess é dada como desaparecida, o que Rachel viu pode se tornar relevante para entender o que aconteceu com ela.
Usando um recurso que virou modinha desde George R.R. Martin, o livro tem três linhas narrativas, três vozes femininas que contam a história: Rachel Watson, Jess (cujo nome verdadeiro é Megan Hipwell) e Anna Watson, atual esposa do ex-marido de Rachel. Interessante como, aparentemente, os homens – Tom Watson e Jason (na verdade, Scott Hipwell) são meros coadjuvantes na narrativa de cada uma delas.
A narração é toda em primeira pessoa, o que de imediato dá a dica de que o que é “contado” ao leitor pode não ser necessariamente o que aconteceu, mas sim a visão de cada personagem. E, levando em conta que Rachel é a que passa mais tempo narrando, é por seus olhos que acompanhamos a maioria dos fatos. Mas temos aí um problema, ou melhor, um recurso narrativo que oblitera a percepção do leitor propositalmente: o uso de um narrador não confiável. Se, em algumas obras, descobrimos apenas próximo do final que não deveríamos ter confiado no narrador, nesta, logo no início, somos levados a questionar o quanto são verídicos e fidedignos os fatos que Rachel conta. Afinal, Rachel é alcoólatra e descobre-se que vem mentindo à sua amiga sobre estar desempregada há 3 meses – não é spoiler, já que está no começo da história e consta em várias sinopses. Como confiar no relato de alguém com amnésia alcoólica, se até mesmo a própria personagem duvida da veracidade de suas lembranças? Esse ingrediente a mais é o que deixa o leitor “com a pulga atrás da orelha”, sem saber direito em que se basear para montar a sequência dos fatos em sua cabeça à medida que a leitura avança.
“De vazio, eu entendo. Começo a achar que não há nada a se fazer para preenchê-lo. Foi o que percebi com as sessões de terapia: os buracos na sua vida são permanentes. É preciso crescer ao redor deles, como raízes de árvore ao redor do concreto; você se molda a partir das lacunas.”
(pag.144)
E não é apenas a situação atual de Rachel que a torna uma narradora pouco confiável. O ponto de vista de Anna reforça essa ideia, mesmo que – não se esqueçam – o que se lê é o que ela nos conta, da forma como ela vivenciou os fatos. Para Anna, Rachel é uma stalker que insiste em rondar e invadir sua nova vida com Tom e o bebê recém-nascido. Alguém que não consegue admitir que seu relacionamento com o ex terminou e que é incapaz de seguir em frente e deixá-los, efetivamente, em paz. E o leitor, ao se deparar com duas versões para o mesmo evento, tende a dar mais credibilidade a uma mãe de família do que a uma desempregada, mentirosa, que vive sob efeito do álcool. Dessa forma, mesmo quando Rachel começa a se recordar do que houve na noite em que Megan desapareceu, o quanto disso pode ser levado em consideração?
Por fim, há a narrativa de Megan que, aos poucos, vai revelando ao leitor detalhes importantes sobre os eventos. Detalhes que tanto complementam o que Rachel presenciou de longe, da janela do trem, como revelam fatos desconhecidos tanto de Anna quanto de Rachel. Fatos que conduzem o leitor a conclusões totalmente diversas das que ele tira inicialmente sobre o que pode ter ocorrido a Megan.
É interessante notar que, a princípio, as vozes narrativas parecem muito semelhantes – algo que me incomodou um pouco, afinal as personagens são bem diferentes entre si. Mas, aos poucos, o estilo vai se modificando, se moldando à personalidade delas, de forma que em dado momento é possível saber quem é quem mesmo sem ter lido a identificação no início do capítulo.
Apesar de o texto de Hawkins não ser tão envolvente quanto o de Flynn, ela cria a necessidade de continuar lendo entrelaçando os fatos com engenhosidade. Conduzindo o leitor habilmente e induzindo-o a querer encaixar a próxima peça do quebra-cabeça o mais rápido possível. Apesar de as reviravoltas no enredo não serem tão intensas ou surpreendentes quanto em Garota Exemplar – algumas são, mas a maioria a gente quase “vê chegando” mesmo que não conscientemente – a autora consegue manter o ritmo da narrativa mesmo em trechos mais amenos que, aparentemente, não agregam muito à trama. Digo aparentemente, pois Hawkins faz um bom uso do recurso de “pista/recompensa” – aquele detalhe que nos parece insignificante e às vezes até desnecessário, mas que capítulos adiante adquire todo um novo significado ao ser inserido em outro contexto.
Enfim, quem resolver ler por ter gostado de Garota Exemplar não vai se arrepender. E tomara que a transposição do livro para a tela também seja tão eficiente quanto foi com o livro de Gillian Flynn.
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Texto de autoria de Cristine Tellier.