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  • Crítica | A Garota no Trem

    Crítica | A Garota no Trem

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    Existem inúmeras frases, de diversas autorias diferentes, que nos chamam à atenção para uma mesma reflexão: Não importa o ponto de partida ou o ponto de chegada. O que importa é o percurso.

    Em A Garota no Trem, adaptação para os cinemas do best-seller da autora Paula Hawkins, o caminho percorrido pela protagonista é tão importante que chega a figurar como uma das alegorias centrais da trama. Revelando não só o mundo pela perspectiva da personagem, mas também os seus próprios dilemas internos e a maneira como o mundo exterior provoca uma reação em cadeia no seu vício em álcool.

    Rachel, interpretada por Emily Blunt, mora de favor na casa de uma amiga e, diariamente, no caminho para o trabalho, observa a rotina dos moradores de duas casas localizadas próximas aos trilhos do trem. De dentro do vagão, ela vela a rotina das duas moradoras das casas, Anna e Megan, enquanto beberica as bebidas alcoólicas que camufla em uma garrafa de água. Em dado momento, uma das moradoras desaparece e Rachel se vê diretamente ligada ao caso, não podendo contar com sua memória falha para defender-se.

    A Garota no Trem é um filme de conexões. Tal qual num livro, cada demarcação temporal da fita nos revela uma nova camada de compreensão do plano geral do roteiro, acrescentando peça por peça em um quebra-cabeças que, embora pareça óbvio à primeira vista, se torna interessante pela maneira como o diretor trabalhou planos, perspectivas e, principalmente, os personagens. Nada rasas, cada uma das personas presentes na trama é um gatekeeper e guarda consigo segredos que ajudam a completar as lacunas iniciais da história.

    Em termos de técnica, a balança pende mais para o lado dos acertos. A trilha sonora é muito simples, dando espaço para os sons naturais do filme e crescendo somente nos momentos necessários. A fotografia escura do filme funciona, ao passo que dá o tom do mistério, mas não dificulta a experiência do espectador. Embora o trabalho da direção de elenco e dos coadjuvantes seja muito bem feito, fica evidente a supremacia de Blunt. A atriz entrega cenas memoráveis que certamente serão reconhecidas na temporada de premiações.

    A divisão capitular com alternância da primeira pessoa ajuda a explicitar múltiplos pontos de vista sobre os acontecimentos e oferece um certo dinamismo ao filme. Embora este seja mais um da vasta lista de tópicos que aproximam esta obra do aclamado Garota Exemplar, de David Fincher, é desonesto dizer que o filme dirigido por Tate Taylor não imprima originalidade. Diretor do igualmente bom Histórias Cruzadas, Tate precisou mergulhar nos escritos de Paula Hawkins e no universo feminino, majoritariamente presente no longa, para representar fidedignamente as características comportamentais que compõe as três mulheres centrais da história.

    É curioso que, ainda que existam momentos bastante conservadores na retratação da figura feminina, o filme consiga se colocar muito bem em relação ao emergente – e muito bem vindo – elemento girl power tão presente na produção cultural atual. Aliás, a função social está aqui muito bem representada. Abordando temas como relacionamentos abusivos, alcoolismo e gaslighting – forma de abuso psicológico onde o homem distorce fatos fazendo com que uma mulher duvide da sua própria memória e sanidade mental –  A Garota no Trem transcende o entretenimento atrelando ao seu texto ácido e crítico a explanação de pautas de suma importância em nossa sociedade e uma exposição da fragilidade e da perversão que residem nos relacionamentos contemporâneos.

    Texto de autoria Marlon Eduardo Faria.

  • Resenha | A Garota no Trem – Paula Hawkins

    Resenha | A Garota no Trem – Paula Hawkins

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    A chamada na capa é um chamariz e tanto. Afinal, Garota Exemplar, de Gillian Flynn, é um dos melhores thrillers que li nos últimos meses. E A Garota no Trem não decepciona. É parecido, mas é diferente, e esta é uma grande vantagem, pois o inesperado da trama chega ao leitor de outra forma. E como se não bastasse a referência a Garota Exemplar, George R.R. Martin (sim, ele mesmo – aquele senhor que está nos devendo os volumes finais de Game of Thrones) indicou a leitura.

    Todas as manhãs, Rachel toma o trem das 8:04 de Ashbury a Londres. Conhece o trajeto de cor, sabe os pontos em que o trem diminui a velocidade, e anseia pela parada num dos sinais, em que observa determinada casa e seus habitantes, um casal desconhecido a quem ela batiza de Jess e Jason. Numa das manhãs, presencia uma coisa que a faz mudar de opinião sobre a vida perfeita que ela creditou ao casal. E quando Jess é dada como desaparecida, o que Rachel viu pode se tornar relevante para entender o que aconteceu com ela.

    Usando um recurso que virou modinha desde George R.R. Martin, o livro tem três linhas narrativas, três vozes femininas que contam a história: Rachel Watson, Jess (cujo nome verdadeiro é Megan Hipwell) e Anna Watson, atual esposa do ex-marido de Rachel. Interessante como, aparentemente, os homens – Tom Watson e Jason (na verdade, Scott Hipwell) são meros coadjuvantes na narrativa de cada uma delas.

    A narração é toda em primeira pessoa, o que de imediato dá a dica de que o que é “contado” ao leitor pode não ser necessariamente o que aconteceu, mas sim a visão de cada personagem. E, levando em conta que Rachel é a que passa mais tempo narrando, é por seus olhos que acompanhamos a maioria dos fatos. Mas temos aí um problema, ou melhor, um recurso narrativo que oblitera a percepção do leitor propositalmente: o uso de um narrador não confiável. Se, em algumas obras, descobrimos apenas próximo do final que não deveríamos ter confiado no narrador, nesta, logo no início, somos levados a questionar o quanto são verídicos e fidedignos os fatos que Rachel conta. Afinal, Rachel é alcoólatra e descobre-se que vem mentindo à sua amiga sobre estar desempregada há 3 meses – não é spoiler, já que está no começo da história e consta em várias sinopses. Como confiar no relato de alguém com amnésia alcoólica, se até mesmo a própria personagem duvida da veracidade de suas lembranças? Esse ingrediente a mais é o que deixa o leitor “com a pulga atrás da orelha”, sem saber direito em que se basear para montar a sequência dos fatos em sua cabeça à medida que a leitura avança.

    “De vazio, eu entendo. Começo a achar que não há nada a se fazer para preenchê-lo. Foi o que percebi com as sessões de terapia: os buracos na sua vida são permanentes. É preciso crescer ao redor deles, como raízes de árvore ao redor do concreto; você se molda a partir das lacunas.”
    (pag.144)

    E não é apenas a situação atual de Rachel que a torna uma narradora pouco confiável. O ponto de vista de Anna reforça essa ideia, mesmo que – não se esqueçam – o que se lê é o que ela nos conta, da forma como ela vivenciou os fatos. Para Anna, Rachel é uma stalker que insiste em rondar e invadir sua nova vida com Tom e o bebê recém-nascido. Alguém que não consegue admitir que seu relacionamento com o ex terminou e que é incapaz de seguir em frente e deixá-los, efetivamente, em paz. E o leitor, ao se deparar com duas versões para o mesmo evento, tende a dar mais credibilidade a uma mãe de família do que a uma desempregada, mentirosa, que vive sob efeito do álcool. Dessa forma, mesmo quando Rachel começa a se recordar do que houve na noite em que Megan desapareceu, o quanto disso pode ser levado em consideração?

    Por fim, há a narrativa de Megan que, aos poucos, vai revelando ao leitor detalhes importantes sobre os eventos. Detalhes que tanto complementam o que Rachel presenciou de longe, da janela do trem, como revelam fatos desconhecidos tanto de Anna quanto de Rachel. Fatos que conduzem o leitor a conclusões totalmente diversas das que ele tira inicialmente sobre o que pode ter ocorrido a Megan.

    É interessante notar que, a princípio, as vozes narrativas parecem muito semelhantes – algo que me incomodou um pouco, afinal as personagens são bem diferentes entre si. Mas, aos poucos, o estilo vai se modificando, se moldando à personalidade delas, de forma que em dado momento é possível saber quem é quem mesmo sem ter lido a identificação no início do capítulo.

    Apesar de o texto de Hawkins não ser tão envolvente quanto o de Flynn, ela cria a necessidade de continuar lendo entrelaçando os fatos com engenhosidade. Conduzindo o leitor habilmente e induzindo-o a querer encaixar a próxima peça do quebra-cabeça o mais rápido possível. Apesar de as reviravoltas no enredo não serem tão intensas ou surpreendentes quanto em Garota Exemplar – algumas são, mas a maioria a gente quase “vê chegando” mesmo que não conscientemente – a autora consegue manter o ritmo da narrativa mesmo em trechos mais amenos que, aparentemente, não agregam muito à trama. Digo aparentemente, pois Hawkins faz um bom uso do recurso de “pista/recompensa” – aquele detalhe que nos parece insignificante e às vezes até desnecessário, mas que capítulos adiante adquire todo um novo significado ao ser inserido em outro contexto.

    Enfim, quem resolver ler por ter gostado de Garota Exemplar não vai se arrepender. E tomara que a transposição do livro para a tela também seja tão eficiente quanto foi com o livro de Gillian Flynn.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.