Marco na carreira de qualquer autor, o livro de estreia sempre se pauta em alta expectativa. Simboliza o primeiro contato graúdo do escritor com o mundo externo e um possível público, tornando-se uma obra definidora de sua carreira ou um romance negado futuramente que ganha mero título de curiosidade por seus leitores. Exemplos não faltam para compreendermos essa dinâmica: o primeiro romance de F. Scott Fitzgerald, Este Lado do Paraíso, causou uma ascensão vertiginosa ao jovem autor, e se tornou o início de uma sólida carreira; Por outro lado, o primeiro romance de José Saramago, Terra do Pecado, é negado pelo autor como uma obra de pouca qualidade. Duas estreias de grandes autores, vistas sobre prismas diferentes.
Tanto por prazer quanto por trabalho, esse crítico leu obras iniciais de diversos autores, dividido entre a curiosidade de ler um primeiro trabalho bem como contemplar grandes obras-primas. Nunca, porém, havia atravessado um conhecimento anterior da obra, focado no autor que, por coincidência, também é um amigo próximo.
Lançado pela Azo Editorial, Incursões é o romance de estreia de Maurício Ieiri que, anteriormente, participou da antologia Contos Fantásticos da 42 (Editora 42) e publicou contos online no coletivo literário Os Caras do Clube. Explorando a metaficção na composição de um personagem escritor, somos apresentados a Thomas Oliveira, um escritor de histórias de fantasia que tenta se recuperar de uma difícil fase na vida. Após se entregar ao álcool, decide se reaproximar-se de ex-esposa e filha, mudando-se para a fictícia cidade costeira de Porto de Amy. Porém, o que encontra na sala de seu novo apartamento deixa seus planos de lado. Duas placas de metal tampam a janela da sala e algo sinistro se esconde por detrás.
O autor parte inicialmente da obsessão do personagem – um fator inerente a qualquer escritor, afinal, todos são obcecados por narrativas e palavras – para contrapor dois momentos da vida de Thomas: seu passado em que os vícios destruíram-no e o presente em que tenta se reerguer. Aquilo que poderia ser apenas um detalhe em seu apartamento, se torna mais um objeto de destruição, ainda mais quando o personagem observa que, de fato, há algo por trás daquelas placas de metal.
Trabalhando com elementos tradicionais das narrativas de fantasia, sem medo de expor citações cinematográficas e referências evidentes a autores que admira, como Stephen King, a obra é a primeira incursão a um gênero que sempre foi admirado por Ieiri. Ciente de que o universo de fantasia sempre esteve em voga como um nicho com um público cativo, o autor não procura desenvolver novos parâmetros para a narrativa do gênero mas propor uma narrativa bem desenvolvida diante desta tradição, construindo bons personagens e costurando-os em cenas que resultam no famoso page turner, fazendo o leitor virar página após página, curioso para saber o desfecho de cada situação.
Composto por um narrador-observador em terceira pessoa, seu narrador é um personagem divertido e bem equilibrado. Apresentando as cenas com boas doses de estilo, sem se render para o didatismo ou descrições exageradas. Mantendo referências e citações como se dialogasse de igual para igual com o leitor, como se fossem amigos. O texto marca a verve de um escritor em início de carreira, ansioso para que sua obra alcance um público e cative-o. Não a toa, nas mais de 500 páginas do livro, há uma solidez na composição narrativa, fruto de um autor ainda com sangue nos olhos, a faca nos dentes, dedicando-se ao máximo para o primeiro e importante passo de sua carreira.
Ainda que ponderemos que a proximidade do autor e o crítico possa impedir certas observações com maior grau de objetividade, Incursões é uma obra sólida que, particularmente, me surpreendeu. Como se sua estreia simbolizasse uma maturidade evidente, além dos olhos do leitor comum. E trouxesse a compreensão interna de que o amigo que escrevia contos no mesmo coletivo literário, aquele que trocou conselhos sobre a escrita, deu um passo além, produzindo a primeira cria literária. Uma obra que precisa ser conhecida por um público maior.
Em uma época editorial que a leitura ainda é vista como guerrilha no pais, com grandes editoras focando em autores internacionais com maiores possibilidades de venda e escritores-leitores se concentrando em nichos de plataformas digitais ou youtubers vendendo livros rasos, sempre é positivo se debruçar sobre um novo autor, reconhecendo que, apesar de combalida, a boa literatura brasileira contemporânea independente ainda respira. Maurício, uma bela estreia, meu caro. Bela estreia.
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