Indicada e premiada por obras de ficção científica e fantasia, a autora Caitlín R. Kiernan estreia no país com uma edição, lançada pela Darkside Books, de uma premiada obra vencedora do Bram Stoker Awards de 2013.
Elogiada pelo estimado Neil Gaiman – um dos mais populares autores do gênero e nome que se destaca na capa brasileira –, a narrativa de A Menina Submersa se expande além do limite dos gêneros por meio do uso de uma linguagem não-usual. Trata-se de uma história que utiliza o registro pessoal de memórias como estilo. Um recurso que permite a parcialidade entrecortada e desvia-se de regras rígidas ditadas por estruturas convencionais da literatura. Ao mesmo tempo, o diálogo direto mantém a intimidade com o leitor, uma espécie de confidente destas memórias.
A personagem central, India Morgan Phelps, conhecida como I. M. P., dialoga tanto com este leitor aleatório e imaginário quanto com a composição de seu próprio texto. Personagem/autora reconhecem a parcialidade da narrativa e sabem modificar os fios lineares da história para potencializar ganchos e revelações, apresentando-os em momentos oportunos. Dessa forma, elas dão voltas em si mesmas e na própria trama para revelá-la de maneira propositadamente emaranhada.
Kiernan introduz em sua narrativa fantástica um recurso literário que revolucionou a narrativa no século XIX, fundamentado por grandes autores, como James Joyce, Virginia Woolf e, no Brasil, Clarice Lispector. O fluxo de consciência da personagem dá vazão à multiplicidade de pensamentos e se torna uma boa escolha estilística para apresentar a psiquê fragmentada de I.M.P.
Se considerarmos que toda lembrança passa por uma natural releitura mental e, mesmo inconscientemente, é modificada ao relembrarmos, há um fio delicado entre o que se sabe de fato e o que se acredita saber. Conforme o leitor adentra as memórias da personagem, somos levados a acreditar que um elemento sobrenatural modificou a vida da garota.
Porém, nem todas as pressuposições são, de fato, um reflexo fiel da verdade. A narrativa lida pelo leitor está sendo filtrada e manipulada por uma mulher adulta, solitária, tímida, e diante de uma doença psíquica grave, a esquizofrenia, capaz de injetar acontecimentos, cenas e fatos em contato com a realidade. Diante desta narradora, a veracidade dos fatos torna-se oscilante, e o leitor acompanha a desconstrução e reconstrução memorialísticas de I. M. P.
O predomínio do fantástico e da fantasia se destaca como recurso que situa o drama interno da personagem. Um drama que reconhece o desvio da doença psicológica à procura da reconstrução real do passado e, consequentemente, da identidade. A experimentação híbrida entre elementos fantásticos e de fantasia, ao lado de um fluxo narrativo, intensifica ao leitor o mecanismo por trás de uma mente esquizofrênica, que considera natural e coerente a pluralidade simultânea de ações diante de um mesmo fato ou acontecimento.
Mesmo situando-se como obra sobrenatural, vencedor de prêmios voltados à fantasia, a narrativa de Menina Submersa é uma desconstrução, de uma doença invisível, feita por uma personagem suscetível, inserida neste difícil paradoxo entre a realidade visível e o real, a partir da própria imaginação.