Transitando entre quadrinhos e literatura, a obra de Lourenço Mutarelli sempre permanece inventiva, partindo de conceitos tradicionais da narrativa para promover rupturas formais. Inserindo-se em suas histórias, desenvolvendo uma metanarrativa, seja como personagem explícito ou participando das adaptações cinematográficas, o autor se metamorfoseia em sua própria obra.
Após hiato de cinco anos, o escritor retoma sua vertente narrativa e lança O Grifo de Abdera pela Companhia das Letras. A obra é uma consagração de sua biografia até então, para aqueles que desconhecem sua trajetória. Mutarelli é, na verdade, um homem múltiplo, além do mero sentido metafórico: uma persona escolhida por dois autores, Marco Tule Cornelli e Paulo Schiavinni, roteirista e desenhista, respectivamente que escolheram se unir em um pseudônimo. Tímidos para a publicidade, escolheram um terceiro amigo, Raimundo Maria da Silva, como um avatar. Este sim representante simbólico do autor Lourenço Mutarelli, aquele que o personifica em palestras, eventos e fotografias.
É sob esta profusão de heterônimos que o autor desenvolve esta narrativa, quando um novo elemento deste jogo de espelhos surge em cena. Um personagem que, supostamente, começa a dividir os pensamentos com Marco Tulle. Embora o argumento pareça de difícil compreensão e seja relativamente exagerado, a narrativa mantém um realismo coerente que gera dúvida no leitor sobre a realidade dos fatos.
Mas não se engane: é Mutarelli o criador deste jogo de falsos personagens. Vaidoso como qualquer autor que se preze, criou o nome dos autores fictícios a partir de anagramas do seu. A obra é dividida em três livros analisados sob pontos de vista distintos de cada personagem.
A primeira parte, O livro do Fantasma, sustenta grande parte da ação. O escritor Tulle toma consciência de grande parte das ações cotidianas de Oliver Mulato e descobre ser capaz de interferir em suas falas. Há uma análise implícita sobre autor e suas personagens, demonstrando que, apesar de demolições pós-modernas, o criador ainda reside como ser máximo da literatura.
A segunda parte, O livro do Duplo, seria um fac-símile de um fanzine desenvolvido por uma das personagens, demonstrando o jogo de espelhos da obra, bem como a faceta de quadrinista do autor, em traços rebuscados e bem delineados.
Por fim, O livro do livro, como identifica o título, seria uma análise posterior e anticlimática da ação central, como se o autor analisasse os próprios fatos e, diante daquilo que considera absurdo, tentasse convencer os leitores de que tudo é baseado em fatos reais. Mutarelli usa com qualidade uma história cotidiana, aparentemente vazia, como argumento. A intriga do Grifo de Abdera, uma moeda mística que funciona como ponto de partida, parece improvável, mas resulta em uma obra que se desenvolve tanto narrativamente quanto dialogando com a reflexão sobre composição literária.
A prosa breve de frases curtas, compostas sempre como verbos no presente, configura a velocidade da ação, resultando em uma dinâmica na qual personagens vivem situações rápidas em uma metrópole acelerada. Uma obra que destaca um atrativo domínio narrativo.