O steampunk surgiu como um subgênero literário e evoluiu para uma estética presente em diversas mídias, inclusive cinema e games. Pode ser definido como um cruzamento entre ficção científica e ficção histórica, apresentando realidades alternativas onde o avanço tecnológico aconteceu mais rápido, empregando o maquinário disponível na época (quase sempre o século XIX). Os cenários explorados costumam ser a Inglaterra Vitoriana ou o Oeste Selvagem norte-americano.
A proposta de Vaporpunk – Relatos steampunk publicados sob as ordens de Suas Majestades, publicado pela Editora Draco, é um exercício de imaginação no mínimo curioso: como Brasil e Portugal seriam sob a ótica steampunk? Organizada por Gerson Lodi-Ribeiro e Luís Filipe Silva, a coletânea consiste em oito contos (ou noveletas, como eles preferem chamar) de escritores dos dois países, que trazem diferentes e criativas visões sobre o assunto.
A Fazenda-Relógio, de Octavio Aragão, trata de autômatos substituindo a mão de obra escrava nas lavouras de café do final do Império, e a revolta dos negros com a abolição que, na prática, os condenou a morrer de fome. Curtíssimo, o conto traz uma boa ideia, e só, pois não há espaço para se desenvolver.
Os Oito Nomes do Deus Sem Nome, de Yves Robert (sim, ele é português) é uma história de espionagem com elementos sobrenaturais, com o steampunk como pano de fundo. Essa ligeira “fuga” da proposta, aliás, está presente em outras das noveletas. Nesta, vemos o que acontece quando Portugal se torna uma potência mundial graças a um sinistro acordo com divindades africanas.
É impossível não pensar em A Liga Extraordinária ao ler Os Primeiros Astecas na Lua, de Flavio Medeiros Jr, disparado o conto mais massa véio do livro. Num contexto onde a evolução tecnológica antecipou a Guerra Fria e a corrida espacial (!), aqui entre Inglaterra e França, acompanhamos outra trama de espionagem, pelo ponto de vista de um agente duplo britânico que espiona para os franceses. Alguém se esqueceu de avisar o autor sobre a proposta da coletânea, pois Brasil e Portugal mal são citados. O que não tem a menor importância, pois ele, numa empolgação sem freio, mergulha em mil referências à literatura da época, com direito a H. G. Wells e Júlio Verne como ministros dos países rivais, e várias das criações de ambos dando as caras. Com um final surpreendente, Os Primeiros Astecas na Lua daria um filmaço.
Gerson Lodi-Ribeiro apresenta em Consciência de Ébano um mundo onde Palmares evoluiu de quilombo para uma grande nação independente que divide espaço com o Brasil dos portugueses e uma colônia holandesa no Nordeste. Uma pena que não haja nenhuma pista sobre como isso aconteceu, pois é um cenário bastante interessante. O foco é em um agente de uma organização secreta palmarina, que decide trair sua missão e destruir a arma secreta de seu governo: um vampiro indígena. Aqui o steampunk (presente com a construção de uma hidrelétrica) é uma mera desculpa para se contar uma história sobrenatural densa e pessimista. Vale mencionar o esforço do autor em relação à linguagem empregada, que simula perfeitamente algo escrito no século XIX.
Unidade em Chamas, de Jorge Candeias, mostra um corpo militar português às vésperas de uma guerra. O diferencial é que tais soldados estão em uma grande frota de dirigíveis, chamados aqui de “passarolas”. Pelo ponto de vista de um recruta, vemos a dureza do cotidiano dos soldados, se preparando para um combate que eles nem sabem direito contra quem ou por que, além da tensão racial provocada pela união com outra tropa reunida e treinada em segredo nas colônias. Ainda que peque pela narrativa excessivamente descritiva ao tratar do treinamento e do funcionamento das aeronaves, nas entrelinhas percebe-se um cenário fantástico, de modo que esta noveleta sem dúvida merecia ser expandida em um romance.
Uma interessante discussão moral/ética sobre se criar ou mesmo reproduzir a vida através da Ciência pontua A Extinção das Espécies, de Carlos Orsi. Protagonizada por um jovem Charles Darwin, em sua célebre viagem a bordo do HMS Beagle, a história também foge um pouco da ideia do livro. Há uma passagem pelo Rio de Janeiro, mas o foco mesmo é na Patagônia argentina, onde os gaúchos estão em guerra contra os indígenas da região. Conceitos de armas biológicas, robótica e até nanotecnologia rendem alguns momentos perturbadores.
O nível cai um pouco com Os Dias da Besta, de Eric Novello. A trama parte da investigação sobre a presença de uma criatura metamorfa no Rio de Janeiro. Mas aí vemos um Brasil próspero e se destacando na corrida tecnológica sob o governo de D. Pedro II, Conde de Tunay com um super agente secreto/inventor, Princesa Isabel aviadora liderando um grupo de piratas, diversas invenções mirabolantes, intrigas internacionais… falta foco. Ao jogar tantos conceitos poucos trabalhados, a história parece um aleatório capítulo do meio de algum livro.
João Ventura, mais do que qualquer outra coisa, presta uma homenagem à figura histórica do inventor português Padre Manuel Himalaya com O Sol é que Alegra o Dia… Abordando a energia solar em diversas aplicações, este é de longe o conto mais leve da coletânea. Interessante, porém incomoda um pouco o tom documental adotado pra contar um grande período de tempo em pouco espaço. A impressão é estar lendo um livro didático ou um artigo de enciclopédia.
Mesmo com a oscilação de qualidade entre os contos (até porque seria injusto e ingênuo esperar o contrário), Vaporpunk só teve a ganhar com essa diversidade enorme entre as histórias. Cada autor soube imprimir seu estilo, tom e interesse específicos, seguindo (ou desviando elegantemente) a linha-mestra do steampunk em terras lusófonas. Leitura mais do que recomendada.
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Texto de autoria de Jackson Good.