Perdido em uma vida modorrenta e preso em um casamento fracassado, o psicólogo italiano Raniero vê sua vida mudar da água para o vinho quando conhece uma jovem e misteriosa paciente chamada Dora, que o leva por uma jornada de autoconhecimento e reflexão sem precedentes, colocando em dúvida as noções tradicionais de relacionamento e de liberdade sexual que sempre nortearam a vida certinha e nada ousada do protagonista.
Ambientada na Itália em um futuro próximo, a trama gira em torno de temas como sexualidade, monogamia, vida extraterrestre, telepatia e o inclemente avançar da tecnologia na vida em sociedade, para estruturar seu enredo a partir da constante contraposição de pontos de vista entre os personagens, que por vezes se pegam em um jogo de interlocução que evocam mesmo o clima de uma entrevista.
Embarcando em uma proposta narrativa que opera de modo fragmentário, Manuele Fior faz uso do silêncio com a mesma sutileza com a qual lida nas sequências conversacionais, forjando uma intrincada teia de eventos que atordoam e surpreendem a todo instante, contrabalanceando o impacto das interações com a aura etérea que paira sob o enredo, através de enquadramentos panorâmicos que atuam no controle do ritmo da narrativa.
A arte, fortemente estruturada entre preto, branco e as variações de tonalidade que existem entre os dois, alterna planos abertos e fechados e em um engendrado uso dos tons de cinza para dar e retirar a iluminação necessária ao longo dos painéis, conferindo assim uma atmosfera sobrenatural e sombria para a história, artifício este que potencializa o suspense da trama ao mesmo tempo em que oferece camadas de significação no campo diegetico, ao se utilizar da ambientação típica das ficções científicas para explorar a profundidade inerente às emoções humanas.
Autor de Cinco Mil Quilômetros por Segundo, o quadrinista italiano novamente investe em uma história sobre sentimentos e sobre a natureza complicada das relações interpessoais, mas agora foge do convencional ao entregar um trabalho inventivo e surpreendente, tanto a nível de roteiro quanto em relação à narrativa visual elíptica que adota ao inserir, de forma melindrosamente diluída no enredo, uma crítica à dependência do ser humano em relação às novas demandas impostas pela tecnologia e pela aparentemente incontrolável necessidade de romper com as convenções, algo que marca a história humana ao longo dos tempos, em contraste com a necessidade que os seres humanos têm de se conectar uns com os outros.
O roteiro de Fior lembra em larga medida o eixo temático utilizado pelo seriado televisivo Black Mirror, que se notabilizou ao longo da última década por seu uso alegórico da tecnologia para versar sobre a complexidade do ser humano.
Traduzida por Michele Vartuli, “A entrevista” é a segunda obra de Manuele Fior trazida ao país pela Editora Mino, cativando pela prosa envolvente e pela arte expressiva do autor, capaz de criar personagens inesperadamente relacionáveis e marcantes, lançados em situações incômodas e incomuns.