Assim como em Silêncio, a saga seguinte de Batman foi planejada para reunir dois grandes parceiros nos quadrinhos: Brian Azzarello e Eduardo Risso, que lançaram pela Vertigo a premiada 100 Balas. Duas diferenças básicas podem ser apontadas entre as sagas e sua publicação no país. Cidade Castigada possui apenas seis edições, metade do arco anterior. Ao contrário de ser publicada uma edição a cada mês como na história de Loeb/Lee, a Panini Comics compilou, em apenas duas edições, Batman nº 23 e 24, como se desejassem apressá-la. Talvez seja este o motivo que proporcionou o lançamento, em 2007, de uma reedição em capa dura dando o merecido destaque para essa série.
Cidade Castigada apresenta uma narrativa feita pelo próprio morcego em sua cidade natal. Ao mesmo tempo que reconhecemos esta narração como um estilo comum em diversas outras histórias, percebemos um estilo diferente pela maneira com que o roteirista compõe as falas. Não se trata de uma narrativa que apoia as cenas de quadrinhos, assim como os desenhos não são apenas a representação gráfica da história. Azzarello insere um narrador mais erudito, próximo de um narrador de um romance, com uma observação mais atenta e mais poética que foge da narrativa simples.
O início da trama está na morte da irmã de Angel Lupo, um comerciante de carros usados com ligações com o submundo de Gotham. Encontrada morta no aterro da cidade, Batman executa uma investigação formal para descobrir quem foi seu assassino nesta trama que a investigação é um dos pilares primordial, sem a presença constante de grandes personagens de sua galeria de vilões, um recurso utilizado em Silêncio. Dessa vez, a trama é focada na investigação e, por consequência, na relação do morcego com sua cidade.
Azzarello e Risso promovem, em texto e imagem, uma Gotham noir feita de poesia e sujeira. Os traços de Risso são complexos e, como a poética do roteirista, trabalham de maneira mais densa os contornos e ângulos de visão. Há uso significativo da narrativa não-verbal feita pelas imagens, e por consequência é necessário um exercício maior de atenção por parte do leitor, o qual também perceberá que, na maioria das cenas, sempre há mais de um fato acontecendo, como se Gotham fosse uma cidade que nunca dorme, sempre disposta a abrigar mais um assalto ou agressão.
Azzarello dá maior densidade poética à narração feita por Batman ao mesmo tempo que mantém as reflexões tradicionais da personagem, retomando o trauma inicial de Bruce Wayne, com direito à famosa cena da morte dos pais com destaque à imagem do colar de pérolas despedaçando-se. Mesmo repetida e reinterpretada por diversos desenhistas, ainda assim a cena possui uma bela dramaticidade. Ao mesmo tempo, o autor apresenta novos detalhes, simples modificações que produzem uma tônica real do personagem, como se, ao contrário de diversos roteiristas que parecem escrever a história pensando na lenda do Morcego, ele derrubasse essa visão para focar também o homem.
Temos um Batman mais lúcido e irônico. Ciente de que foram necessários muito trabalho, dedicação e estudo para se tornar a lenda heroica atual. A narrativa mostra certo cansaço de Wayne com sua cruzada contra o crime, e nos dá uma boba e divertida pérola de seu cotidiano em uma cena: após a patrulha, o herói decide treinar ao invés de dormir e, após horas de exercícios, vai para a cozinha grelhar o próprio alimento. É uma visão diferente, um mero detalhe que ganha nova forma devido ao fato de nunca vermos a personagem em atos mundanos. Uma exposição que parece coerente, afinal o rigor físico do morcego necessita também de boa alimentação para mantê-lo. Porém, diante da ausência de qualquer situação semelhante em outras histórias, este pequeno detalhe ganha maior destaque.
Outro fato positivo em relação a essa história foi seu lançamento dentro da mensal do Morcego. A tônica narrativa poderia muito bem ser direcionada para uma graphic novel, tanto pelo tamanho breve quanto pela modificação narrativa. Trata-se de uma história que enfoca a investigação, e que coloca Batman e Gotham como personagens. Há vilões que se apresentam para ajudá-lo ou despistá-lo na investigação. Mas são presenças pontuais, ao contrário das diversas participações dos vilões em Silêncio. Além de alguns destes vilões, dois novos personagens surgem na cidade, a dupla Hiroshima e Nagazaki, um homem corpulento e uma franzina e rápida lutadora, ambos envolvidos na morte que Batman investiga.
Além da humanização física do Morcego, Azzarello também corrompe seu intelecto dedutivo. Uma investigação sempre toma diversas linhas de possibilidades, que vão sendo eliminadas pouco a pouco. Porém, normalmente, as histórias produzem deduções certeiras que fazem o herói sempre encontrar o caminho certo, como se suas habilidades dedutivas e de raciocínio fossem superiores e perfeitas. Porém, após acreditar que está prestes a resolver a investigação, o Cavaleiro das Trevas assume ter criado pressupostos errados para investigar o acontecimento. Detalhes colocados na trama que demonstram por que, mesmo superior nesse quesito, Bruce Wayne, como qualquer outro detetive, também é passível de falhas.
Os traços de Risso criam uma experiência sensacional de apuro artístico, trabalhando com primazia espaços e traços que, às vezes, não apontam com exatidão sua intenção, sendo desenhos transmorfos representando tanto a cidade quanto um objeto maior. O próprio Morcego faz uma analogia no primeiro quadro da história, dizendo que os prédios de Gotham parecem mandíbulas de metal, demonstrando a poética do roteiro de Azzarello e como o trabalho de Risso ajuda a explorar esta dualidade. Ao observar o quadro, intencionalmente vemos tanto os prédios quanto as possíveis mandíbulas de metal de um monstro.
A breve incursão da dupla no universo do herói produz uma bela narrativa policial com texto e arte primorosos. Sem dúvida, uma obra que merece atenção pela qualidade e por conseguir transpor as barreiras cronológicas e se tornar também uma história fechada. Um dos motivos pelo qual grandes histórias tornam-se futuros clássicos.
Muito interessado nessa obra,boa resenha