Resenha | O Eternauta 1969
Releitura da obra de ficção científica argentina O Eternauta, a nova versão foi veiculado originalmente na revista Gente, uma revista tradicional e de costumes, que trata da vida de celebridades e que, vez por outra, possuía espaço para histórias em quadrinhos. Cada edição da revista trazia três páginas da história, com Francisco Solano López dando lugar para Alberto Breccia, que já havia trabalhado com Héctor G. Oesterheld em Mort Cinder e Sherlock Time.
A diferença mais gritante entre as versões começa nas cores. Breccia usa muito mais a dualidade do preto e branco, hachuras e jogo de sombras, enquanto Solano López possuía um traço mais normativo, suas imagens não divergiam tanto da realidade, eram menos fantasiosas, expressionistas, e claro, desconfortáveis. Aqui a arte está longe de ser discreta, e isso ajuda a inserir o leitor naquela Buenos Aires que é atacada pelo fator externo, e o senso de urgência tende a ser ainda maior por conta do grafismo que mora na tensão dos pretensos sobreviventes.
O quadrinho é consideravelmente mais curto que o original. Oesterheld parecia não ter receio em ir direto ao ponto, boa parte dos plots é atalhada, embora haja aqui algumas questões diferenciadas, como um olhar mais detalhado para questões de sobrevivência sexual em meio a aproximação de um possível fim do mundo ou da existência humana, e de fato, cenários pós apocalípticos provavelmente trariam esse tipo de pensamento à tona, ainda mais em se tratando de homens, de pessoas dentro do limite da humanidade.
Há nessa versão da editora Comix Zone um texto que traduz uma entrevista de Guillermo Saccomanno e Carlos Trillo, localizado no final da publicação, onde são dados detalhes dessa edição e do quanto O Eternauta original teve peso na produção de quadrinhos na Argentina e na carreira de seu escritor. Isso vindo de dois roteiristas tão premiados dá um pouco da dimensão de como a história é importante, não apenas para para a carreira dos envolvidos, mas também para toda uma cena de quadrinhos no país, e de fato quando um evento tão seminal se tornar popular, facilita com que outras histórias no mesmo estilo ou até em outros tipos, e boa parte dessa reflexão deles se dá também para a republicação de 1969.
O traço de Breccia nesta obra faz lembrar muito seu trabalho em Mort Cinder, e apesar do tom das duas histórias serem diferentes, ao menos no que toca o Viajante da Eternidade há um ganho enorme, pois a aura em torno do Juan Salvo que vem do futuro resulta em um ser que parece ter contato íntimo com o Divino, parecendo uma entidade. Além disso, no texto de introdução, o doutor em Sociologia André Pereira de Carvalho faz um prefácio que compara essa versão da neve tóxica com a Ditadura Militar argentina, que imobilizava os argentinos que buscavam liberdade, e por vezes os matava. Esse comentário acabou por ser profético a Oesterheld, assim como a tentativa de Salvo de voltar no tempo para tentar evitar aquele futuro distópico.
Essa versão, tão diferente da outra em desenho e pressa narrativa, questão essa até hoje muito turva em suas origens, tal qual é discutido pelo próprio Oesterheld que afirma que a revista Gente o apressou e censurou boa parte do seu trabalho (fala retratada no Brasil pelo estudioso Paulo Ramos em Bienvenido: Um Passeio pelos Quadrinhos Argentinos) ajuda a dar novos significados à obra.