Resenha | Zé Dirceu: Memórias – Volume I
José Dirceu foi uma figura importante e controversa do cenário político brasileiro, sendo uma das forças do Partido dos Trabalhadores e consequentemente do ex-presidente Lula. Presidente do partido, ativista político nos anos de chumbo, exilado por conta de prisão política, ex-ministro da Casa Civil, possível sucessor de Lula como presidenciável antes dos julgamentos do Mensalão, Dirceu passou por muita coisa, entre elas, uma prisão cujas razões são discutidas até hoje. Em Zé Dirceu: Memórias – Volume 1, o próprio fala a respeito de sua vida, em um trabalho que começou a fazer através de anotações enquanto esteve preso por conta de sua pena na questão do Mensalão.
O livro publicado pela Geração Editorial só foi possível graças a sua atual esposa Simone, que o convenceu a escrever para que sua filha caçula soubesse quem era o pai por ele mesmo. A historia começa a ser contada na infância em Minas Gerais, nos anos 50 e 60, e destaca sua ida para São Paulo, quando foi um líder estudantil preso. As memórias também detalham o treinamento guerrilheiro que teve em Cuba e a transição de liderança entre estudantes para exilado e perseguido pelo governo – e logo depois clandestino. Partes bem narradas, com riqueza de detalhes em eventos privados e íntimos de Dirceu, sempre em paralelos com eventos políticos contemporâneos.
Ler essas memórias reforça a ideia de que o PT, ao menos na questão de militância de seus afiliados mudou pouco. O biógrafo salienta que há muitas correntes ideológicas e que a maioria era trotskista. Toda a fala sobre a política petista em governos municipais é bem detalhada, desde citação de quadro antigos assim como investimento nas periferias nos mandatos de prefeitura na capital paulista, especialmente quando foi Luiza Erundina a mandatária. Alias, o impedimento dela de se candidatar a reeleição para ele foi um dos motivos que fez Lula não tomar a dianteira para voltar ao pleito presidencial em 2014 no lugar de Dilma Rousseff.
A percepção de Dirceu sobre as figuras que já foram petistas é curiosa, como a discussão do legado de Cristovam Buarque hoje persona non grata no partido, o breve perfil de Fernando Gabeira e seus embates com Severino Cavalcanti, ex-presidente da câmara de deputados federais. Ao falar de Plinio Arruda suas palavras são pesadas, chama-o de um burocrata e aristocrata e que sempre foi um candidato das oligarquias religiosas, além de muito personalista. Ele não teme criticar, até por conta de sua carreira sempre ter sido alvo de críticas.
Apesar da biografia ser um registro mais antigo (compreende a historia de Dirceu até 2007) chega a assustar um pouco que certos eventos narrados aqui, como a recusa do PT no Fora FHC, encontra eco com um momento recente, em que partido tinha receio em falar abertamente sobre um impeachment de Jair Bolsonaro. Com a crença de que se deixar o governo sangrar, as chances eleitorais deles seriam maiores em um momento posterior. Dirceu julgava que isso era um erro e provavelmente também acharia isso do momento atual. Alguém de dentro criticando tais ações é importante, a famigerada auto crítica do PT de certa forma ganha contornos reais por parte de um sujeito que fez parte importante da vida do partido.
A primeira rusga com Lula ocorreu por não ter sido ele a discursar antes do eleito presidente, e sim José Genoino, que viria inclusive a sucede-lo na presidência do PT. Mas fato é que o biografado não tinha tantas divergências com o presidente. Aqui ele desmistifica a suposta aproximação que teria com Lula. Na verdade, diz que Antonio Palocci eram quem estava realmente próximo do presidente e que, de sua parte, esteve com o comandante em chefe muito mais em eventos oficiais do que em momentos íntimos.
A Revista Veja apontava Dirceu como o número 2 do PT (segundo o autor, uma meia verdade). Para ele, isso poderia ter mexido com os brios de Lula, como se estivesse chocando o ovo de um possível adversário político dentro do partido. Isso é bem discutível, mas visto que Dilma assumiu a mesma pasta que foi de Dirceu, dada a articulação dele dentro do partido e o fato dos pares antes do mensalão sempre terem considerado ele um sujeito muito útil ao partido e ao governo, seria natural que ele crescesse. Mas faz pouco sentido tudo isso, afinal em toda hierarquia havia um numero 1 e um número 2, que poderia ou não ser ele.
Dirceu fala com mágoa de sua cassação, não só sobre figuras menores, como Anthony Garotinho que disse que iria votar nele só porque não era digno de respeito, ou Roberto Jefferson, réu confesso e que em seu relatório de delação não havia apresentado nada de contundente, só acusações genéricas e bem frágeis (e de fato era assim, a despeito até da opinião de Dirceu sobre seu próprio caso). O destaque vai para a mágoa nos votos de companheiros e outros camaradas que foram aos poucos saindo do partido, tanto que evita citar a maioria nominalmente. Também conta como o político caiu porque não tentou comprar votos para permanecer no cargo. Fato é que nem Delúbio Soares e nem Genoino acusaram Dirceu pelos esquemas das mesadas (ambos, recentemente seriam absolvidos inclusive), mesmo levando conta toda a fragilidade da acusação.
O volume dois corresponderia a vida de Dirceu de 2007 em diante, mas no epilogo ele pincela um pouco do cenário político da atualidade, traça um perfil de todos os indicados ao Superior Tribunal Federal, além de condenar o complô midiático contra o projeto do PT, discutindo a seletividade quanto a condenação, de figuras como Michel Temer e Aécio Neves. Seu mantra bate principalmente na Globo e inconscientemente fala sobre a eclosão do ovo de cobra que resultou a eleição do Jair Messias, um filho indesejado mas longe de ser bastardo, aquecido e gestado em meio ao golpismo iniciado contra o segundo mandato de Dilma. Das ultimas palavras inéditas, Dirceu fala sobre os erros do partido no poder, abordando que era preciso mais transparência nas contas, nos acordos que ele mesmo ajudou a promover e claro, na ida de Lula a candidatura em 2014.
Zé Dirceu é um sujeito de inteligência ímpar e uma visão indiscutivelmente sóbria sobre o cenário político e ideológico do Brasil, e diferente de Lula e outras lideranças da esquerda, não tem papas na língua para falar de seus defeitos ou sobre os esqueletos no armário, já que está longe de ser candidato a qualquer cargo eletivo ou algo que o valha. A distancia da vida política o faz ser um bom analista, tornando esse Memórias – Volume I, além de sua biografia, um bom estudo sobre o Brasil do século XX e começo do XXI.
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