Crítica | O Irlandês
Após muitos anos prometendo adaptar o livro de Charles Brandt, finalmente Martin Scorsese consegue realizar seu O Irlandês, que acima até da pecha de “filme de máfia”, resulta em um grande épico, dos que lembram o cinema clássico de David Lean. O roteiro de Steve Zaillian (de O Gangster e O Homem Que Mudou o Jogo) adapta a historia do matador da máfia Frank Sheeran, o matador de origem irlandesa que auxiliava um grupo de mafiosos reais que ficou bem famoso por ter suas memorias publicadas.
A historia resulta em um longo e belo filme, que só foi possível de ser adaptado por conta da forma como a parceira Netflix transmite suas obras, sem restrições de tempo para exibição, fato que no cinema, certamente seria um impeditivo (muito injusto, já que a obra de Scorsese não é gordurosa). O retorno do diretor ítalo americano ao filão que lhe fez consagrar obras como Os Bons Companheiros, Cassino e Caminhos Perigosos não poderia ser mais emblemático, violento e profundo, e seu início se dar em um asilo é além de emblemático, muito simbólico, e faz refletir não só sobre a velhice e a solidão e carência que normalmente vem com essa fase da vida, mas também há uma reflexão sobre a santificação que por vezes ocorre com pessoas que morrem ou que envelhecem.
Tal qual as outras obras já citadas aqui de Scorsese, esse também se usa do artifício de quebrar a quarta parede, e de falar com o espectador, em uma mistura de estilos entre Taxi Driver, por conta do intimismo e de a maior parte dos contos ser feito pelo protagonista, e um pouco como O Lobo de Wall Street, por evocar muitos absurdos e infortúnios.
A historia de Frank se confunde com o avanço da criminalidade mafiosa oriunda da Itália e escrutina seu crescimento como caminhoneiro e negociante de carne com a associação que foi fazendo com os ditos homens feitos, inclusive colocando nessa origem uma pitada de teoria da conspiração. Aos poucos é mostrado como sindicalismo, política e fraudes andam lado a lado nesse cenário mafioso, isso tudo com uma música que faz lembrar demais os acordes de Nino Rota a frente de O Poderoso Chefão.
Frank era um veterano da segunda guerra mundial, foi lá que ele matou pela primeira vez e naturalizou aquilo afinal, era uma guerra. Não demoram a aparecer as entidades criminosas, como Russell Bufalino, do recém tirado da aposentadoria Joe Pesci (que aliás, faz um papel bem diferente do que produziu nas parcerias com o diretor). A chegada dele aliás parece causada pelo acaso, como se o destino quisesse entrelaçar as duas linhas de vida, como se fosse inexorável aquela amizade e parceria.
A intimidade de Russ e Frank é desenvolvida aos poucos, de maneira gradual e natural, de forma bem silenciosa e sorrateira, emulando de certa forma o método que Frank tinha em executar seus trabalhos. Por mais truculento que ele fosse ao reagir emocionalmente aos problemas pessoais – e ele passional, e muito – ao executar seus atos criminosos ele era cuidadoso, exceto claro no inicio de sua jornada. Com o tempo a banalização da vida e de assassinatos é tomada como regra de comportamento, uma clara evolução do quadro de frieza quando o até então jovem executava inimigos de Guerra na Sicilia, Catânia e no interior da Itália. Matar os filhos do país da bota era algo impessoal desde o início de sua vida adulta, nada mais natural que prosseguisse assim, repetindo os feitos de guerra.
Jimmy Hoffa, um dos personagens centrais dessa historia real só aparece com quarenta minutos de filme, e traz um Al Pacino de volta a velha forma. Curiosamente a maquiagem e o CGI de rejuvenescimento funciona melhor com esse personagem – com Robert DeNiro e Pesci não funciona tanto, principalmente nas cenas diurnas. Toda a mitologia criada em volta do presidente sindical é muito bem fortificada, ele é um sujeito sui generis de fato, causa espanto por conta de suas manias e de seu carisma. É impossível não se apaixonar ou não odiar sua figura dentro de tela e fora dela também, Hoffa é irresistível não só para quem o cerca mas também para quem assiste.
Já se esperava isso, mas Scorsese faz de seu filme um show de participações especiais. Quase todo elenco de Família Soprano, Boardwalk Empire e filmes relacionados a Cosa Nostra, Omerta e outras facções e ligações mafiosas tem sua vez, e nenhuma é gratuita, ao contrario, há um cuidado para que cada papel seja executado de forma certeira e emocional, aumentando o aspecto de opera que o filme tem.
Frank é sobretudo um homem falho. Seu relato é bem sincero, em especial nesse aspecto. Ele não tem boa relação com a filha Peggy – aspecto que norteia toda a emoção do filme, e que dá a Anna Paquin e a pequena Luccy Gallina um ótimo papel, apesar de ambas estarem quase sempre caladas. A diferença cabal entre ele o Hoffa é o fato do segundo ser sempre bem quisto por todos, inclusive pelos de Frank, afinal, ele não pisoteia mãos de opositores, nem os espanca, não suja as mãos, seus crimes são escondidos pelo verniz elegante e social
O duo de Pesci e DeNiro é ótimo, mas o que se executa entre Hoffa e Frank é ainda mais soberbo e recompensa todas as péssimas uniões de DeNiro e Pacino até aqui, fazendo finalmente justiça a interação que sempre prometia ocorrer mas que decepcionava ou por ser muito curta, ou por ser em uma obra sofrível. Os rompantes temperamentais de Jimmy casam demais com o estilo discreto e conciliador do encarregado de executar os homens que a máfia mandava, e a relação dos dois vai muito além da simples cisma de que os opostos se atraem, eles parecem de fato amigos, parece mesmo que aquele era um pacto sanguíneo e eterno, e isso enriquece demais o drama e as consequências dali para frente na trama.
As três linhas temporais servem bem ao serviço de recontar uma historia, que mesmo com todos os absurdos, retrata uma realidade. O propósito parece não ser só o de biografar a vida de Sheeran, mas uma boa parte da historia criminal da America do Norte, incluindo ai um coração partido, e a sensação clara de que diante da Lei da Omerta, dos juramentos e do todo, só quem importam são os italianos e os membros da família, por mais glamour que seja atribuído aos “associados”.
As intenções de silenciar os adversários e a não crença (arrogante diga-se) de que os criminosos poderosos estavam acima do bem e do mal levou o grupo de criminosos italianos para um fim bastante merecido e melancólico, com direito a um envelhecimento sem qualquer dignidade. Scorsese avança em sua desglamourização da mafia em seu esforço anti O Poderoso Chefão, traduzindo bem as memorias de Frank especialmente no quesito melancolia. O matador arrependido tem o infortúnio de não ter morrido cedo, de envelhecer e ter que encarar seus pecados e toda a emoção que é empregada nesses últimos momentos tornam ele um sujeito muito humanizado, mas não livre das máculas que cometeu durante a vida, e só por isso O Irlandês já seria um filme soberbo, mas é mais que isso, é um belo retrato da vida cotidiana dos imigrantes e de seus filhos que tentaram uma melhor alternativa na America e só encontraram a marginalidade como alternativa.
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