Tag: cinema holandês

  • Crítica | A Excêntrica Família de Antônia

    Crítica | A Excêntrica Família de Antônia

    Escrito e dirigido pela holandesa Marleen Gorris (Sra. Dalloway), A Excêntrica Família de Antônia, lançado em 1995, é uma comédia dramática que narra a vida de uma mulher que destoa da sua época e lugar. Tendo nascido e vivido seus primeiros anos em uma pequena vila interiorana e atrasada da Holanda, na juventude, Antônia (Willeke van Ammelrooy) ruma para um grande centro urbano para construir sua vida. Casa-se, traz Danielle (Els Dottermans) à luz, é abandonada pelo marido e precisa batalhar para cuidar de si e da filha. Ao receber a notícia da proximidade da morte da mãe, retorna, após 20 anos, para seu local de nascimento levando Danielle.

    O filme apresenta uma perspectiva feminista e utópica de independência individual, especialmente da mulher. Narra a passagem da vida de ao menos três gerações femininas, Antônia, Danielle – sua filha – e Thérèse (Veerle van Overloop) – filha de Danielle. Gorris se esforça para entregar uma narrativa interessante, mas que não passa de uma crítica barata às tradições e ao machismo do pós-guerra.

    Os papéis dessas três mulheres são os centrais na trama. Justificam-se em função da mensagem que a roteirista-diretora que transmitir. Para um olhar mais atento, o papel de Boer Bas (Jan Decleir) será o de maior atratividade e o mais verossímil. Praticamente todos os personagens são caricaturas, o que parece ter sido intencional na obra de Gorris. No meio dessa novela caricata, a verosimilhança de Bas é um alento. Destaca um tipo de homem pouco explorado no cinema, especialmente o contemporâneo e “engajado”, do qual “A Excêntrica Família de Antônia” é grande modelo. O ator é um ótimo exemplo de masculinidade não-tóxica; um homem viril, responsável, honesto, trabalhador, admirador das mulheres (no caso do filme, apaixonado por Antônia) e capaz de amar uma mulher mais forte que ele próprio sem se deixar “enfraquecer” em tal relação. O típico homem que constrói uma vida sólida ao lado de um mulher que também o faz.

    Antônia é uma mulher que ainda muito cedo deixou sua cidade natal interiorana e “parada no tempo” para ir viver num centro urbano moderno. Uma mulher que teve de enfrentar várias dificuldades nesse processo e que ao se tornar mãe teve de criar sua filha sozinha. Papel que assumiu com determinação e força. A personagem acaba por figurar um exemplo de mulher forte que constrói sua vida em cima (e não apesar) das dificuldades; ao mesmo tempo em que delineia sua trajetória sem se preocupar com preconceitos e esteriótipos. Ela é apresentada como uma mulher que age como se por consequência da reflexão sobre o Ser. Antônia narra a história, os fatos, descreve os personagens e as relações; e também reflete sobre tudo isso. Nesse processo mesmo de narração-reflexão, ela está sempre questionando o que é “Ser” em nossa espécie, e em seu tempo, lugar, situações e relações.

    As questões existenciais vividas pelos personagens são extremamente fortes no longa (vencedor de diversas premiações, incluindo o Oscar de melhor filme de língua estrangeira de 1996). Destacam-se: o existencialismo, o relativismo cultural e a divisão sexual do trabalho.

    O existencialista Dedotorto (Mil Seghers) não via sentido na vida, apenas no “conhecimento”; e, por isso mesmo, como diz Antônia em certa passagem, “Não saia de casa desde a Guerra”. Na carta que envia a Thérèse, Dedotorto escreve: “É um absurdo crer que a dor constante que nos aflige seja puro acaso. Pelo contrário, a desgraça é a regra, não exceção. A quem culpar pela nossa existência? À explosão solar que nos deu vida? Eu me acuso, já que não creio em Deus ou reencarnação. Se acreditasse, poderia me iludir do que a vida nos promete, uma sobremesa divina depois da indigesta refeição” (cena em torno de 1h22min do filme). Deixa óbvio seu entendimento de que a vida é sem sentido e o homem nada mais é que qualquer outro animal, qualquer outra matéria e que, assim, a vida e a morte de um indivíduo são meros fatos corriqueiros na modificação de estado da matéria. Essa é filosofia que tem como destino gerar um único resultado: o fim da vida humana.

    A não aceitação da “gravidez solitária” de Danielle por parte do padre e seu discurso na igreja (na cena em que ela e Antônia se levantam e saem da igreja em função do discurso odioso e agressivo dele em relação à situação daquela – em torno do minuto 37 do filme) demonstram todo potencial humano de intolerância. Postura que depois se inverte, após o padre ser pego realizando sexo oral em uma mulher dentro da igreja (em torno do minuto 39 do filme) e sua hipocrisia é exposta.

    A divisão sexual do trabalho é criticada muito diretamente na relação entre Thérèse e Simon (Reinout Bussemaker) e em como conduzem a divisão de papéis familiares, em especial na criação de Sarah (Thyrza Ravesteijn). Papéis que, no geral, são o oposto do padrão patriarcal e machista das sociedades humanas. Cenas bastante ilustrativas disso são: (i) a reunião no quarto do casal logo após o nascimento de Sarah, em que Simon está preocupado no cuidado com a criança e na recepção às pessoas, enquanto Thérèse trabalha na cama; (ii) o momento em que Sarah está brincando no balanço e pede a atenção da mãe que está próximo a ela, mas que não se distrai do trabalho para ficar com a filha; que, por sua vez, na sequência, cai do balanço, se machuca e é cuidada pelo pai, ao tempo em que a mãe retorna ao trabalho.

    A maternidade de Danielle chama muito a atenção. Um estudioso da tradição filosófica conservadora (de Edmund Burke até Thomas Sowell e Roger Scruton, passando por Russel Kirk e Michael Oakeshott) tem convicção de que as tradições são construídas e resistem ao “teste do tempo” por que se demonstram positivas dentro das possibilidades reais (ou seja, excetuando as imaginárias, as utopias). Sendo assim, ainda que perceba e entenda que em certas situações particulares uma criança pode ser melhor criada numa configuração que não a da família tradicional, no geral, entende que a melhor configuração possível é aquela em que um ser humano é concebido por consenso mútuo e com base no amor; e criado e educado nas mesmas bases. Por isso, a decisão de Danielle, apoiada por sua mãe, de simplesmente “procriar”, encontrando um homem “provedor de boa genética” para engravidá-la sem que ele saiba; e de simplesmente “criar” a criança no meio de sua “comunidade alternativa rural” é uma mensagem muito forte e deturpadora do bom senso. A não ser por seus aspectos negativos, a película não deveria ter recebido a atenção que lhe foi dada.

    Texto de autoria de Marcos Pena Júnior (marcospenajr.com).

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  • Crítica | A Montanha de Matterhorn

    Crítica | A Montanha de Matterhorn

    MATTERHORN-POSTER

    Solitário, Fred, personagem de Ton Kas segue viagem de ônibus, por paragens esmas, praticamente inabitadas, até o seu destino. O ônibus vazio age como um agente de premonição, que evidencia o estado de espírito dele, como um ser que prefere o isolamento e o silêncio da introspecção, que só é interrompida pelo canto lírico que ele tanto aprecia.

    A Montanha de Matterhorn trata da convivência forçada de um par de homens, sendo um deles um sujeito metódico, religioso e tradicional, e outro tresloucado, dionisíaco e completamente avesso a rotina, além de não se comunicar por meio de palavras. Theo, vivido por René van ‘t Hof só rompe o silêncio para sentenças curtas, com frases lacônicas e monossilábicas. Em comum há o fato de que os dois cavalheiros estão incomodados com a presença um do outro.

    A normatividade e a paciência de Fred são testadas a todo momento, uma vez que Theo é inábil de muitas maneiras diferentes, seja nos modos a mesa, nas rezas ao Senhor, no trato às pessoas e até na prática do futebol. O desafio dessa comunhão é enorme, mas guarda momentos ótimos, como toda a loucura que envolve a simples rotina da dupla. Até as idas à mercearia são épicas, com Theo imitando ovelhas em meio aos corredores dos mercados cheios de transeuntes e compradores. Até a ranzinzice de Fred parece aos poucos ceder, diante da alma atribulada de seu parceiro, aos seus olhos, um sujeito carente.

    Pouco a pouco, Fred se permite sentir mais do que está previsto sentir. Ele defende sua contra-parte do bullying de crianças “mal intencionadas”, sob o pretexto de não permitir que ele se acostume a deixar as crianças tratá-lo como um idiota, já que o trabalho da dupla é animar festas infantis, lugares repletos de criaturas assim. O envolvimento de Fred com seu parceiro é visto com maus olhos pela comunidade que o cerca, quase toda formada por calvinistas (como mesmo ele é), e até a sua mente é confundida, já que o sentimento de paternidade pelo atrasado homem se torna em algo maior.

    A abordagem do iniciante diretor e roteirista (ao menos em longas para o cinema) Diederik Ebbinge mostra uma parcela conservadora da população holandesa, formada por pessoas excludentes e julgadoras, que atiram pedras naqueles que são diferentes aos seus olhos. Os pares decidem dar vazão aos seus sentimentos, planejando uma viagem a Suíça (ao Monte Matterhorn) e um casamento. Indagado sobre o que Deus pensaria disso, Fred solta o grito preso em sua garganta, murmúrio que por tanto tempo escondeu, de que a Divindade nada fez por ele, jamais se preocupou de verdade com o seu bem estar, rompendo assim uma secular relação de servo e senhor.

    O nonsense permeia todo o modo de abordar os temas espinhosos provenientes da fita. Depois de uma difícil jornada, após beber de fontes antes desconhecidas, regadas a luzes neon, lantejoulas e afetação, Fred e Theo finalmente sobem a montanha, num esforço hercúleo por sua libertação, sem fazer qualquer apelo, sem cenas explícitas, sem panfletarismo visto a uma primeira olhada. Ao contrário, chega até a ser sutil para o expectador pouco atento, apesar de ser muito flagrante para o bom observador. A Montanha de Matterhorn é um dos poucos momentos em que forma e conteúdo conseguem convergir perfeitamente, cuja importância entre os dois é dividida de igual para igual.

  • Crítica | Movimento Browniano

    Crítica | Movimento Browniano

    Movimento Browniano

    Um quarto vazio, ordenado e silencioso. Os primeiros minutos de filme já indicam perfeitamente o ritmo da narrativa que vai se suceder a partir de então em Movimento Browniano, da diretora holandesa Nanouk Leopold: lento e inexpressivo.

    Charlotte (Sandra Hüller) é uma médica que vive em Bruxelas com seu marido Max (Dragan Bakema) e seu filho pequeno. Divide sua vida familiar e de trabalho com os encontros íntimos que tem com os pacientes que atende no hospital. Quando Max descobre as traições de sua esposa, passa a levá-la a consultas psiquiátricas, além de ter que lidar com a perda da confiança de sua mulher.

    Ausência de expressão, frieza e distanciamento são palavras que ilustram bem a atmosfera do filme. Os poucos diálogos da obra dão lugar à escolha estética narrativa de suspensão de informação. Não há trilha sonora alguma no filme, apenas sons ambientes. Olhares, sorrisos e respirações. Os sons dão lugar às sensações na maior parte do tempo. Assim como Max, somos levados a tentar entender as motivações misteriosas de Charlotte, porém o filme nos faz acreditar que tudo aquilo é mais profundo do que podemos imaginar. Não há nada certo. Tudo permanece em suspeição.

    Os planos abertos, de longa duração, a direção distante e a utilização da câmera de maneira imparcial são todos usados com o intuito de dar uma entonação reflexiva ao filme. Movimento Browniano arrisca em escolhas que poucos filmes possuem coragem de fazer. Leopold é corajosa e abstrai as aparências externas para causar reflexão nos espectadores, quase como se estivesse invadindo a mente destes mesmo sem perceberem.

    Existe muito mais no vazio do que aparentemente acreditamos. No vazio existem pensamentos e estes são tão grandiosos quanto qualquer outra forma de expressão do ser.

    Texto de autoria de Pedro Lobato.