Crítica | Vicenta
Uma jovem, com deficiência mental, é estuprada por seu tio. O crime gera uma gravidez, e a situação sequer é compreendida pela vítima. Amparada pelo Código Penal da Argentina, país em que vive, a mulher leva o caso à Justiça a fim de realizar o aborto. O que seria o cumprimento da Lei acaba esbarrando em burocracias judiciais e em dogmas morais e religiosos, levando Vicenta, a mãe da vítima e personagem que dá nome ao filme de 2020, a enfrentar o sistema judiciário do país e o estigma da sociedade argentina.
O filme de Darío Doria foi lançado poucos meses antes da aprovação do aborto legal na Argentina dentro das primeiras 14 semanas de gestação. Vendo-o hoje, na edição deste ano do festival É Tudo Verdade, com tal perspectiva histórica, não é estranho perceber o tom difuso que o documentário animado assume. Parte lamento, parte celebração, Vicenta se encarrega de analisar os sintomas criminosos de uma sociedade conservadora, mesmo que sem pretensão de fornecer um diagnóstico para além do debate que cerca a interrupção da gravidez.
O espectador brasileiro não precisa dos fatos tratados no filme, ocorridos em 2006, para que tenha seu próprio julgamento sobre o caso. O Brasil de 2020, assombrado pelo de 2018 e amaldiçoado até sabe-se quando, passou por uma repercussão semelhante ao da argentina Laura, mas tratando-se de uma menina pernambucana de 10 anos. As manifestações de cunho religioso de cada situação podem evocar seu par, da mesma forma que os entraves judiciais, que até então eram previstos no ordenamento jurídico, emperraram devido ao debate público acalorado.
Vicenta, que se refere à filha doente como “uma criança que cresce, mas não cresce”, não tem seu nome no título principal à toa. É por meio de sua figura e ponto de vista que os 70 minutos de projeção percorrem seus caminhos. Com bonecos feitos de massa de modelar e imagens reais de noticiários da época, o documentário se desdobra numa linearidade simples, indo do ponto inicial ao final sem tomar vias tortuosas. O pragmatismo do filme, guiado pela protagonista e a narrativa, poderia ser o ponto principal de uma potência dramática, mas que se resume ao sentimento dúbio e por vezes conflitante já abordado.
Não que a tônica seja de fato problemática, mas o documentário soa aquém de alguma intenção de manifesto, reservando-se mais como um retrato histórico de um tempo não tão distante e de uma mentalidade social ainda existente. O quadro é reforçado pelas figuras planas, sem vozes e com poucos nomes, que assumem funções em vez de personalidades. Da mesma forma que os bonecos estáticos, que dependem de seus arredores para que algum movimento seja visto em tela, esses personagens dependem da casualidades de seus ambientes. Meros peões que precisam do movimento de outras peças para que prossiga o jogo de suas vidas, com raras chances de uma posição de xeque-mate.
A personagem real de Vicenta assume esse lugar no tabuleiro, tal qual sua representação fílmica. Apesar de se resguardar um tanto em seus debates, o documentário tem força suficiente em sustentar a tensão entre a efemeridade e perenidade das causas ali abordadas.
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Texto de autoria de Arthur Salles.