O cultuado diretor francês Jean-Luc Godard resolve fazer um experimento visual e comunicativo. Seus últimos filmes, apesar de não terem a qualidade – seja pelo quesito datado da Novelle Vague ou por uma adaptação demorada aos novos complexos e globalização – que os clássicos Acossado e O Demônio das Onze Horas, ainda assim representam todos os questionamentos expostos de maneira ácida que só Godard poderia fazer.
Em seu novo filme, Adeus à Linguagem, a história resolve focar um casal que parece não possuir pudor e nem se limitar aos costumes morais e éticos da atual sociedade. Demonstram estar à parte, descolados e que sua exclusão é proposital. No entanto, o longa-metragem resolve fitar o cão como o personagem principal, mas não o protagonista. O protagonismo é mutável e em muitos momentos, se torna a própria forma que Godard se comunica com quem assiste seu filme. Cada vez mais a comunicação, a linguagem e o uso de metáforas através de discussões e ponderações tomam corpo e saltam ao 3D, deixando o 2D seguir sua linearidade, mas não deixando um sem falar com o outro.
O diretor se apropria do 3D de uma maneira curiosa e que atiça diversas sensações. Não somente como um elemento visual, o filme exibido em três dimensões quebra a contínua linha narrativa e revela uma outra linguagem que, mesmo que seja diferente, é o viés encontrado para não somente contar como há estes deslocamentos e desapropriações de ambiente e contexto, mas também para criar parâmetros, estabelecer pontes que permita ao espectador compreender a proposta do filme. De maneira até experimental, ele é disperso e confuso. Há cortes de cenas e áudios e algumas frases não foram traduzidas, a pedido do próprio Godard. Será que isso também foi um artifício para que você se sentisse incomodado por não compreender o que está sendo dito?
A física do filme permite que mesmo disperso e aleatório em alguns momentos, tenha sua linha temporal peculiar, com encontros e momentos que cravam um tempo dentro dele. O nascimento do filho, as mudanças de valores e comportamentos que são influenciados pelo ambiente que os rodeiam. É um ensaio visual que não necessitou de um roteiro extenso e tampouco história para se desenvolver. O abuso do abstrato, da multi interpretação e da quebra de linearidade – reitero que isso não desconstrói a história simples do filme – são os elementos que Godard esbanja e retrata uma expressão artística peculiar, realista e temporal.
Sobre o avanço da tecnologia, há o retrocesso da linguagem. Há a ausência cada vez maior de comunicação e fala; isso é o que transforma todas as relações entre as pessoas e destas com o redor difícil, precária. O cão, o que foge das questões de moral e ética do ser humano é o personagem mais vivo do filme, pois tudo que é interferido por ele sofre de sua solidão. Todas as cenas com ele, o acompanha sozinho em meio a enormes meios. Florestas, praias, cidades. Porque para ele a exploração é parte de seu processo natural, de vivência. A descoberta e a autonomia. Falta isto aos homens.
Ainda na esteira de seus últimos lançamentos, Jean-Luc Godard declara em texto o que já se notava óbvio, especialmente em sua filmografia recente: igualar os que buscam refúgio na realidade a medíocres sem imaginação. Como uma ode à discussão entre pensamento e não-pensamento, Adeus À Linguagem é um experimento narrativo do experiente realizador, que busca incessantemente respostas para suas próprias indagações, algumas vezes passando mensagens ao seu público, outras não.
A nova fica por conta do uso do 3D, recurso ainda não explorado na longa filmografia do francês. O que não é um fator novo é a discussão política, mais uma vez remando contra o lugar comum de arquétipos bilaterais, refutando o conceito muitas vezes atrelado à esquerda de que a solução é a intervenção irrestrita do Estado. Além disso, ataca a hipocrisia da direita, que gosta de recorrer a ações de socorro que visam interesses de empresas de grande porte, ao passo que encaram algumas vezes o assistencialismo como ajuda a desocupados. A miopia geral em relação a discussões sobre economia é o alvo do cineasta.
O nome do filme faz uma óbvia referência ao casal de “protagonistas”, Josette (Héloise Godet) e Gédéon (Kamel Abdeli), já que um tampouco é fluente no idioma do outro, o que praticamente inviabiliza o diálogo verbal, obrigando-os a encontrar diferentes alternativas para se comunicarem. O abstrato ganha contornos reais quando o animal de estimação dos dois passa a falar, o que explica ao espectador menos acostumado com a estética recente de Godard o motivo pelo qual nem sempre a sequência de cenas faz sentido, ao menos sob uma ótica normativa.
É preciso que um animal irracional tome a narração dos fatos e discussões propostos na trama para que haja um laço de lucidez. A tela de Godard se bifurca, com exibições reverenciais em telas de televisão de filmes de monstros clássicos, onde prevalecem estudos dos arquétipos junguianos, enquanto as pessoas retratadas dizem detestar o resumo do homem em personagens, o que vai de encontro à visão particular que Sigmund Freud tinha em relação à análise pessoal e intransferível da psique humana, um dos principais fatores de brigas entre os dois pensadores. A conclusão do cineasta, apesar de recair em maior parte na teoria freudiana, deixa margem para qual seja das duas visões de mundo.
A pulsão para o novo cinema do realizador é provocar mais perguntas que respostas, invocando imagens belas, escolhidas a dedo, e que provocam reações adversas na mente e nos sentimentos de seu público, não restringindo o conjunto de sensações ao simples resumo de um diálogo bobo, fugindo de limitações de repertório e impressão.
O convite de Godard é feito para que seu público viaje junto a ele, pelos mesmo cenários aos quais estão habituados, as mesmas visões e rotinas que se tornam enfadonhas com o tempo, mas que possuem uma gama de interpretações poucas vezes alcançada. Especialmente se analisarmos tendências como o tédio e o consumo desenfreado de lixo glamourizado, valorizando modos de comunicação como urros e gemidos, que em suma louvam o modo primitivo de enxergar e viver o mundo real.