Crítica | Elis
É de fato um desafio representar uma pessoa pública, principalmente uma pessoa pública que tem a expressão e interpretação como principais elementos do imaginário popular. É preciso cuidado para que não se torne uma imitação caricata e até mesmo ofensiva. É preciso afetar o público, que já acostumado a se emocionar com a figura se coloca previamente descrente daquilo que verá. E relacionado a isso estão dois dos principais acertos de Elis, Cinebiografia de Elis Regina. O primeiro deles está na iniciativa de em sua primeira cena apresentar ao público Andreia Horta no contraluz, em uma imagem difusa com luzes e sombras, encarregando quem assiste de completar aquela imagem a partir das lembranças e afetividade de cada um, colocando todos dispostos a vencer a suspensão de descrença da figura interpretada por Andreia. Esta disposição, porém, exige ou faz esperar mais momentos de emoção e saudade, expectativa esta que vai fragilizando-se com o decorrer da fita, não pela performance da atriz, que é visceral e emocional tanto quanto poderia ser, mas por que simplesmente não é a mesma coisa. Eis a dor e a glória de representar um ícone. O segundo acerto é justamente manter a Elis de Andreia Horta em praticamente todas as cenas, como sendo ela um fio condutor de histórias e afetos ao seu redor; um ser magnetizante pela qual a câmera se apaixona e deixa seduzir, tal qual todos aqueles que com Elis conviveram.
O elenco apresenta divertidas pérolas, com representações de diversos nomes da MPB, como o compadre Jair Rodrigues (Ícaro Silva) pelo período de apresentação do programa O Fino da Bossa, Miele (Lúcio Mauro Filho – muito a vontade no papel) e Ronaldo Bôscoli (Gustavo Machado), mas com a terrível falta do dueto com Tom Jobim interpretando Águas de Março, naquela que talvez seja a apresentação mais marcante da música brasileira. Apesar deste rigor interpretativo falta tempo em cena para que essas diversas figuras soem necessárias para a narrativa, e os conflitos que todas elas representam, como seus dois maridos Boscôli e César Camargo Mariano (Caco Ciocler), são resolvidos de forma apressada e expositiva, dando a impressão de que os eventos simplesmente espanavam, no lugar de serem consequência de algo, ou parte de uma narrativa maior.
Porém, devido a ambição do projeto, o grande pecado de Elis está em alguns aspectos técnicos que ressoam a “farsa”. A fotografia, pouco dedicada em retratar os aspectos cinematográficos do visagismo e reprodução de época, não apresenta qualquer personalidade, pois apesar de o filme abarcar mais de 15 anos na vida de Elis, não auxilia na contextualização dos períodos pelos quais a linha do tempo do filme passa, por culpa do aspecto monotônico com que todas essas passagens são retratadas. Em determinado momento o que se faz é usar o crescimento dos filhos de Elis, João, Maria Rita e Pedro Mariano como uma forma de identificar a passagem de tempo e situar o espectador. Um truque efetivo, mas incômodo por ser puntual e burocrático.
Outro ponto crítico, mas que torna-se mais contundente por se tratar da cinebiografia de uma cantora, é a simplicidade do design de som e mixagem. Não apenas nas cenas musicais, em que não se aproveita a possibilidade do cinema de sons em diversos canais e com diversas texturas, dando o que se chama “efeito palco sonoro” – onde graças as caixas de som colocadas ao longo de toda a sala e direcionamentos na intensidade ou características do som é possível emitir sinais sonoros a partir de diversos pontos, nos dando a impressão de estarmos em um palco – e isso ressoa a impressão de que estamos diante de atores competentes fazendo playback, já que voz e instrumental vêm todos basicamente dos meus lugares e nenhuma ambiência é adicionada à essas gravações. Este defeito ocorre também nas cenas cotidianas de diálogos, como quando um personagem coloca-se atrás da câmera, que filma Elis, e durante o diálogo ouve-se a voz do ator inserida na pós-produção partindo de algum lugar não identificável, mas que, com certeza, não representava a posição do ator na cena, parecendo uma voz vinda do além. Nas cenas de musical este defeito amenizava-se nas cenas de plano muito aberto onde a nossa sensação seria de que todo o som viria da nossa frente, ou nos planos muito fechados, onde a sensação seria de que o som vem de todo lugar ao mesmo tempo, mas estes enquadramentos são minoria ao longo da película.
Com diversas lacunas, um roteiro por vezes simplista que se apoia na necessidade ingênua de reproduzir diversas vezes a frase “Elis é a maior cantora do país”, mas que não retrata essa potência e emoção com que Elis chorava sobre o palco, Elis vale pelo afago nas lembranças que cada um nutri desta mulher que representa o ápice da qualidade musical e entrega no palco. Uma mulher poderosa que nunca se contentou em cantar suas músicas, mas sim viver, chorar, e sorrir cada uma delas com a intensidade de quem nasceu para ser tudo que se quer.
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Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.