Crítica | O Mordomo da Casa Branca
O filme se inicia com uma emblemática citação a Martin Luther King “A escuridão não pode expulsar a escuridão, apenas a luz pode fazer isso.”. The Butler mostra a trajetória do negro Cecil Gaines – Forest Whitaker – desde sua traumática e trágica infância, até a vida adulta, onde atuou como um servil mordomo na casa presidencial americana por longevos anos, passando por grande parte dos momentos marcantes da história americana, em especial pelos martírios e conquistas executadas pelo povo negro.
No ato primeiro, Cecil é mostrado ainda como uma criança, aparentemente feliz, mas que logo teria sua vida marcada. Seu pai deixa claro como são as regras: “não se meta com esse homem (branco), o mundo é dele, e nós só vivemos aqui” – após essa fala a sua mãe é levada para fora de sua vista, para satisfazer o desejo de seu “patrão” e logo em seguida seu pai é morto, mesmo não apresentando nenhuma resistência. O trauma ocasionou nele a vontade de fugir, e garantir que seus herdeiros não tivessem acesso aquele mau, encarnado como o Sul dos Estados Unidos, uma região intolerante por si só.
Cecil cresce, e se torna um “negro de casa”. Após consumar sua fuga, encontra em seu caminho um sujeito que o ajuda, lhe dá emprego e toma para si a máscara de mentor, dando-lhe um tapa no rosto ao ver o rapaz dizendo a palavra nigger – “este é um termo feito por brancos, carregado de ódio”. Já adulto, o protagonista passa a trabalhar em Washington DC, e graças à sua boa postura – cabeça baixa, submissão, e capacidade de invisibilidade – é convidado a trabalhar na Casa Branca.
A magnífica atuação de Forest Whitaker faz o espectador crer em cada um dos seus dilemas, seja o medo de perder o bom emprego que tem, as preocupações com as reclamações de sua esposa – Oprah Winfrey, competente em sua proposta – ou com o bem estar de seus filhos. Louis, personagem de David Oyelowo, evolui de um menino próximo do pensamento rebelde americano, para um “revolucionário” membro dos panteras negras. A cena intercalada entre um protesto numa lanchonete no sul do país e o salão de jantar na casa branca é emblemática em mostrar a atitude geral do povo negro, alguns como inconformados, e outros serviçais leais ao homem branco.
A trajetória de pai e filho vai em direções bastante opostas, mas igualmente emocionantes. A luta não é leve, é tratada como visceral e cheia de significados. A primeira-dama chorando após o assassinato de JFK, ensanguentada pelos restos do marido é de partir o coração, muito bem montada, e faz Cecil retornar à triste memória da morte de seu pai – mais uma figura inspiradora se foi.
Os filhos de Cecil se engajam cada um para um lado, enquanto Louis torna-se um ativista político e evolui, deixando de lado a luta “rebelde” para se tornar um combatente intelectual, Charlie alista-se para a guerra do Vietnã. Quando indagado pelo irmão mais velho, o personagem, cômico a maior parte do tempo, diz seriamente que quer lutar a favor de seu país, e não contra ele, mostrando que ele enxerga a situação tão mal quanto o seu pai. A morte do filho faz Cecil rever alguns de seus conceitos. O convite do jantar impingido pelo presidente Reagan causa constrangimento no mordomo, que se sente como um mentiroso, um fantoche feito para exibição de uma falsa aceitação. A postura do político ajuda-o a enxergar o real valor de seu filho, igualando-o a um herói e não há mais um simples marginal. O reatar da relação acontece num primeiro passo com o pedido de demissão depois com o engajamento por parte do patriarca, e no último ato são os únicos dois que permanecem.
O paralelo com os presidentes também é interessante, os mais importantes para o negro foram Jack Kennedy (James Marsden), que o fez começar a mudar o seu pensamento em relação à causa, e Ronald Reagan (Alan Rickman), que se mostra contra o término da segregação ignorando o apartheid – mesmo sobre protesto do seu próprio gabinete. Reagan é mostrado como um bufão, apresentado quase sempre de forma jocosa e pouco reflexiva, bastante parecida com a interpretação recente de George W. Bush, ambos encarados como imbecis por uma boa parte da opinião pública.
Ao visitar Barack Obama – um novo tempo – Cecil lança mão dos presentes dados pela senhora Kennedy e por Reagan, e quando entra na sala de espera é enquadrado junto a uma foto de Abraham Lincoln, com um claro simbolismo de que ali começava mais uma etapa na guerra pela igualdade. O registro de Lee Daniels é muito bonito, repleto de simbolismo e demonstrações realistas da história, obviamente escolhendo o lado oprimido, mas em momento panfletário de forma gratuita. Tem todo o cunho político que a Academia tanto gosta e sem dúvida merece atenção especial por parte do espectador.