Crítica | Fuga
Animação e documentário. Temores e memórias. Guerra e Oriente Médio. O cenário e a temática de Fuga (2021), longa documental do dinamarquês Jonas Rasmussen, premiado em Sundance, remetem a Valsa com Bashir, do israelense Ari Folman. Tratando das lembranças íntimas de seus protagonistas como ponte de construção do presente, o recente filme de Rasmussen assume características próprias a partir da apresentação de seu personagem principal.
Amin Nawabi (nome fictício) é o sujeito da história. A trama é iniciada no presente, com Amin na casa dos 30 anos e morando na Dinamarca. Seu amigo Jonas, responsável pelo longa dentro e fora de cena, tenta extrair algum tipo de confissão que conforte e encaixe as peças da identidade fragmentada do protagonista.
Nascido no Afeganistão dos anos 1980, em meio ao conflito entre os rebeldes afegãos mujahideen e as tropas soviéticas de ocupação no país, Amin tratou em sua juventude de refugiar-se da guerra que vitimara seu pai e tantos outros semelhantes. Homossexual e imigrante, a repressão do ser toma forma como necessidade de sobrevivência e como elemento principal no desenrolar da narrativa.
O uso do pseudônimo, não à toa, preserva a figura real por trás de Amin. Ainda que a preocupação premente seja para fora do quadro, a ordenação do enredo leva o espectador no fluxo de memórias alquebradas do protagonista. Na figura de Jonas, que aparece em boa parte da projeção em diálogo com Amin, o público identifica-se como um desbravador ativo nas conversas que levam o protagonista a revelar mais e mais de seu passado dúbio e por vezes intencionalmente omitido.
A narração que amarra as diferentes linhas temporais numa única voz e num vaivém de situações que são repetidas e corrigidas dá ao filme um tom de solilóquio. São nas hesitações de Amin, em suas expressões de medo e alegria, que seu verdadeiro self se revela, independentemente de lar ou símbolos de designação. A espontaneidade das ações se desdobra com leveza no tear narrativo que atravessa diferentes décadas, países, momentos e pensamentos.
É essa mesma narração que em vários momentos torna-se excessiva ao redundar o que o plano visual muito bem apresenta em seus diferentes tons de animação. A maior parte das memórias do protagonista, tal qual a vivência presente, ganham corpo em desenhos quase estáticos, com poucos quadros em movimento por segundo. Um recurso inteligente e que dá vazão às lembranças menos racionais de Amin, são os esboços animados por meio de um processo semelhante ao de rotoscopia, ainda que mais vibrante e expressionista que a tradicional forma.
O contexto social dos períodos e dos locais também é retratado com o uso de imagens de arquivo, de noticiários e de registros de guerra que circundam a esfera particular de Amin. Mesmo com a utilização moderada, o truque pouco acrescenta em qualquer termo, até mesmo num suposto peso de costurar material factual na colcha de retalhos ficcionais e pessoais do protagonista. A inventividade da animação, que é hábil no equilíbrio entre imaginar o ficcional e retratar o real, muito mais tem a dizer das descrições do protagonista ao público que qualquer imagem captada no calor da ação.
A uma hora e meia de filme pena para chegar ao fim com o fôlego e a potência prometidos pelas circunstâncias da história. Ainda assim, Fuga é um belo exemplo de abertura para o festival É Tudo Verdade, demostrando que nem toda força de verdade tem de ser necessariamente real e exibida materialmente aos olhos do público.
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Texto de autoria de Arthur Salles.