Crítica | História de um Olhar
Como uma necromante, Mariana Otero devolve à vida Gilles Caron e a suas fotografias. Caron, desaparecido no Camboja em 1970, foi capaz de cobrir em pouco mais de três anos alguns dos principais momentos do final da década de 1960. São dele algumas das imagens em que o mundo rememora a Guerra dos Seis dias, em Israel; a Guerra do Vietnã; o conflito civil de Biafra e a revolta estudantil de Maio de 68, na França. Em História de um Olhar (2019), mais que relembrar, a diretora francesa exercita uma construção particular da vida de Caron e dos eventos por ele registrados, numa tentativa de entender a história que levou a seu desaparecimento.
O fotógrafo é encarado de duas formas a partir dessa perspectiva: um homem comum e um memorialista de seu tempo, nunca desassociado da profissão e da intensidade de sua vida. Mariana tenta preencher o vácuo existente entre uma fotografia e outra, pressupondo situações de acordo com a ordem das capturas, do testemunho de pessoas próximas a Caron, de cartas escritas por ele e das imagens em si. Em dado momento, a diretora brinca com a ordenação das fotos. Se um conjunto de imagens tivesse sido feito antes de outro, como aquela situação registrada se desdobraria na carreira de Caron e até mesmo no mundo?
É desse esforço dialético entre análise e criação que o filme se estrutura. Narradora e construtora dessas histórias, a realizadora se coloca como uma personagem ativa e consciente de suas escolhas. A intimidade com as fotos é tamanha que Mariana referencia Caron na segunda pessoa, como se ali o fotógrafo estivesse presente e como se aquelas imagens fossem uma representação daquele ser.
A permissão coloca o espectador numa posição também de criador das tantas narrativas ensaiadas na projeção, uma vez que as falas de Mariana convidam o público a imaginar e por vezes participar dos momentos retratados. Para tanto, a montagem se vale de uma sucessão de fotos com significados individuais, mas com diferentes percepções quando visualizadas uma após a outra. Qual seria o aspecto mais próximo da realidade carregado pelo cinema em relação à fotografia se não a de retratar o decurso do tempo dentro de um espaço na presença do movimento? O filme parece ter essa consciência mística da sétima arte em energizar o visível e elucubrar o extracampo para além da estaticidade das películas fotográficas, ainda que utilize o material original de Caron para pensar as possibilidades que circundavam aquelas imagens.
Das histórias que imagina, o documentário ainda tenta demonstrar parte dos processos tomados por Caron na captura das fotos. Ainda que especuladas, as opções dão sensibilidade à figura, como os recuos e avanços do fotógrafo em meio ao fogo cruzado, a identificação dele com um estudante que enfrenta a polícia parisiense ou das possíveis táticas aplicadas por Caron nas selvas vietnamitas a partir de sua experiência como combatente francês na Guerra da Argélia. A imagem do homem se sobrepõe à do fotojornalista e dele lança sentimentos mistos e diferentes aos que são percebidos nas expressões dos retratados.
A narrativa criada por História de um Olhar para os lapsos da vida de Caron não é encerrada em si. Soluções são deixadas de lado, e outras tantas questões surgem sobre o personagem, sejam de antes ou depois do fatídico evento no Camboja. A ampliação humaniza os olhos detrás das lentes e põe sob ótica a história de um sujeito que viveu para registrar a história dos outros.
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Texto de autoria de Arthur Salles.