Crítica | Metanoia
Evocando um sensacionalismo abissal, usando a questão do vício em crack, o filme de Miguel Nagle se inicia com narrações em off em áudios de pessoas depondo sobre a condição dos adictos no tóxico. De nome grego, a origem da palavra Metanoia se faz no sentido de “mudança de pensamento” de seu cerne, e o termo é utilizado por muitos segmentos da igreja evangélica brasileira.
O roteiro é narrado em primeira pessoa pelo personagem Dudu, vivido na fase adulta por Caique Oliveira e na infância/adolescência por um menino bastante diferente, sem qualquer preocupação da produção com a clara mudança de etnia entre um ator e outro. O pouco compromisso com a congruência visual é assistida nas outras personificações de pessoas em passagens de tempo. A continuidade é nula, assim como a esdrúxula troca de atores em períodos longos de tempo. Desde cedo, o rapaz sofre com sonhos e alucinações bizarras, que associam a simples desobediência infantil ao contato com demônios e figuras monstruosas.
Produzido pela Companhia Jeová Nissi, o argumento até tenta ganhar alguma sobriedade com a presença de atores famosos, como Caio Blat, Silvio Guindane e Solange Couto. No entanto, nem a presença de profissionais gabaritados consegue salvar o texto da mediocridade. A adição aos entorpecentes é completamente demonizada, filmada em condições toscas, com situações forçadas e convenientes, a fim de fazer um discurso vazio anti-drogas.
A cena em que Jeffe – personagem de Caio Blat – é introduzido caracteriza a síntese da má construção da fita. Jeff oferece um baseado enorme, sem qualquer cerimônia, para o pobre Dudu, volúvel e suscetível à pressão exercida por seus malvados amigos. O torpor da erva faz enxergar as pessoas sem rosto, como o sonho de outrora, como se sub-consciente o alertasse do que ocorreria com ele no futuro. Sua condição de não usuário para internado em uma clínica de reabilitação é automática. Não há qualquer construção mínima até então, somente uma estrada curta, retilínea e ordinária.
Mesmo os dramas terríveis, de agressão dos viciados aos seus familiares, são conduzidos de modo torto, estúpido e gratuitamente chocante. As reações de ataques tanto de abstinência às substâncias quanto aos excessos do uso são constrangedoras, mesmo para os astros conhecidos.
Mesmo o bom desempenho de Silvio Guindane, especialmente quando através do contato com Solange Couto, que interpreta sua mãe, é interessante como o viciado vivido pelo ator consegue manter uma barba retilínea e muitíssimo bem aparada, mesmo morando na rua por quatro anos, vestido em trapos e com os pés sujos e maltratados pelo contato direto com o asfalto. Os elementos visuais pesam contra as sequências, banalizando os takes que deveriam ser as melhores de toda a duração da fita, excessiva aliás, beirando os cento e vinte minutos.
As intenções do produtor, roteirista e protagonista Caique Oliveira são ótimas, mas a tentativa de valer a palavra cristã acima dos problemas de um toxicômano se perde em meio a uma história mal contada e confusa, tropeçando normalmente nas próprias pernas, corrida por uma narração tola que só faz idiotizar o argumento que já não era forte. A direção de Nagle até tenta em vão salvar algumas sequências, com ângulos panorâmicos, mostrando a desgraça em que Eduardo se metia ao afundar no consumo do crack.
A segunda hora é dedicada ao assistencialismo e a tentativas de reabilitação. As passagens de tempo são confusas, emulando a perda de noção de hora que Eduardo tem ao fumar. Nota-se uma gama enorme de vícios de linguagem teatral na produção do filme, especialmente nos repentes que ocorrem, mudando posturas de personagens sem qualquer construção e deixando de fazer qualquer sentido na proposta fílmica.
Talvez, as sequências sem amarras cronológicas mostradas em Metanoia, “poderiam” (muitas aspas) funcionar em uma humilde peça de igreja evangélica, onde o crivo não é grande e a exigência é nula. Mas, em meio a um circuito de cinema tão seletivo e difícil, é um verdadeiro abuso que o longa consiga ser distribuído para as salas comerciais.
O último ato da peça/filme revela de maneira sepulcral a condição do homem, no caso, através do causo de Eduardo, um ser diminuto e ínfimo diante do Divino, sem direito sequer ao livre arbítrio, mesmo que esta condição seja um evento garantido até mesmo nas sagradas escrituras. Os sonhos que tinha quando criança denotam que toda a derrocada que sofreria quando adulto já era prevista, e mesmo próximo de muitas pessoas ligadas à religião, nem ele, nem os fiéis tiveram a clarividência do que ocorreria.
As intenções de Caique Oliveira ao produzir tal texto são claramente positivas, mas o viés que escolheu para apresentar o drama é equivocado ao extremo, tornando uma situação grave e clamorosa em motivo de piada e propaganda religiosa barata. Um desperdício tanto em relação ao potencial da Companhia Jeová Nissi quanto em relação ao cenário cinematográfico brasileiro mainstream. A falha de Metanoia talvez faça seus produtores amadurecerem, mas possivelmente fechará outras tantas portas para o mercado de vídeo cristão.