Tag: Paul Brannigan

  • Crítica | Sob a Pele

    Crítica | Sob a Pele

    sob a pele

    O hype da nova produção sci-fi de Jonathan Glazer (diretor de Reencarnação) começou pela óbvia referência à nudez de Scarlett Johansson, até então nunca descortinada por completo. O vazamento da informação gerou curiosidade por parte do público fã de curvas femininas, dando a Sob A Pele uma popularidade que provavelmente não existiria por outro motivo. O anseio por enxergar a alva pele da atriz sem qualquer tecido encobrindo-a é saciada logo de cara, como se Glazer quisesse dizer que sua história é muito mais que uma bela mulher sem suas roupas.

    Scarlett faz às vezes de Mathilda May, que em Força Sinistra vampiriza humanos, também se valendo de sua sexualidade. Sem utilizar muitas palavras, somente observando, a alienígena passeia pela superfície terrestre, espreitando os seres que habitam o planeta. O filme se vale de edição de som e mixagem bastante singulares. Os barulhos servem para se fazer mergulhar no modo de se sentir da forasteira.

    O roteiro trata de usar os estereótipos da predação carnal/sexual em momentos em que a cor isola os personagens. Na primeira aparição da protagonista, em uma cena onde a extraterrestre toma as roupas de uma outra mulher, o ambiente é puxado para uma tonalidade alva. Quando esta precisa se enredar a um espécime masculino, a monocromia, de tons negros, remete à escuridão dos interesses do sujeito, que termina a sequência preso a uma superfície lodosa. Todos os homens que tentam alcançá-la caem nessa superfície movediça, semelhante a um limbo existencial, onde sofrem mutilações e transformações da matéria corporal.

    A sede e a fome do forâneo é insaciável. Ela parece só se mover para atingir o êxtase inacabável, que em uma análise maior pode ser associada à libido e à volúpia, não só as de suas vítimas – pessoas supostamente egoístas -, mas sim as inerentes ao sujeito comum, que busca o tempo todo fartar as suas necessidades até chegar ao ponto de saturá-las, atingindo o estágio de não vivência. Como destacado por MD Magno ao analisar a obra freudiana, a pulsão eleva o homem a vontade irrefutável de não existir, que jamais é atingida, nem mesmo com a morte, uma vez que ela não pode ser provada empiricamente.

    Após passados 77 minutos de filme, a lente visita cada particularidade da nudez de Scarlett Johansson. A própria personagem se encara diante de um espelho, testando a si mesma e aos seus limites, dobrando e esticando os membros inferiores. Recordando as pessoas que cruzam seu caminho, nota-se o óbvio padrão masculino, mas é também possível perceber que os que a desejam são em sua maioria pessoas solitárias, cuja busca por alento varia, não sendo só marcada pela luxúria, mas pela incrível predominância da carência.

    O modo com que a história é contada é pouco usual e quase nada normativo; em alguns momentos, a abordagem da temática erótica beira o surreal. O exílio da solitude visto antes nos homens é também contemplado na pele da “estrangeira”, que procura manter-se longe do contato humano, sentindo-se abusada quando é tocada de modo lascivo e à força. Mesmo com toda a história decorrida, ela ainda guarda em si uma sensibilidade feminina atroz, ainda que isso não seja, a priori, parte dos seus instintos primários. Ao final, os papéis se invertem: o predador age como a presa, inclusive conquistando os anseios de desejar a morte, pois, quando se vê em perigo, a criatura não se permite salvar. Sob A Pele usa um protagonista extraterrestre para tratar de características humanas básicas, como insegurança, egolatria e misantropia.

  • Crítica | A Parte dos Anjos

    Crítica | A Parte dos Anjos

    a parte dos anjos - poster

    Robbie (Paul Brannigan), um jovem desempregado prestes a ser pai, é sentenciado a cumprir algumas horas de trabalho comunitário depois de espancar um rapaz na rua por um motivo banal. No grupo de infratores que cumprem pena ao mesmo tempo que Robbie, ele encontra outras pessoas com o mesmo problema dele – ter vivido sempre à margem da sociedade e ter dificuldade em arrumar emprego. Robbie encontra também, na figura do supervisor do serviço comunitário, um amigo e um mentor no conhecimento de algo até então ignorado por ele – a degustação e apreciação de uísque. E Robbie entrevê, nessa nova atividade, uma possibilidade de mudar de vida, de começar uma nova vida com a namorada, Leonie (Siobhan Reilly), e o filho recém-nascido.

    Para os abstêmios ou não apreciadores de destilados, vale uma explicação sobre o título. A parte dos anjos refere-se àquele percentual de uísque que evapora dos barris de carvalho durante o envelhecimento. Lógico, tem a ver com a bebida “descoberta” pelos personagens, porém tem mais a ver com algo que ocorre na segunda metade do filme, mas que me abstenho de contar para não tirar a graça da estória.

    É um filme singelo que talvez fosse lembrado como apenas mais um filme escocês sobre as dificuldades do ingresso na vida adulta não fosse pela guinada no roteiro que ocorre a partir da segunda metade da trama. O filme deixa de ser uma estória dolorosa sobre problemas sociais e jovens infratores para se tornar uma aventura no melhor estilo sessão da tarde, em que ideias mirabolantes são postas em prática e conseguem ser bem-sucedidas a não ser por um percalço ou outro. Esse novo rumo surpreende o espectador e é nele que reside a leveza do filme, apesar de todo o non-sense das situações vividas pelos personagens. A mudança de tom e a nova abordagem da estória fazem toda a diferença no resultado final.

    A trajetória de Robbie remete ao herói injustiçado que recebe um dom, que será responsável pela rendenção do personagem. Robbie consegue, usando sua aptidão recém descoberta, vislumbrar a possibilidade de sair da vida marginal e imersa em violência em que se encontrava até o momento. E, contrariando a máxima de que o ambiente molda o caráter, decide tomar as rédeas da sua vida nas próprias mãos. Mesmo tomando um atalho a princípio – que leva o espectador a questionar se os fins justificam os meios -, livra-se do passado e dá um novo rumo à sua vida junto à sua nova família.

    O filme não é longo, e assim consegue manter o ritmo do início ao fim, sem “barrigas”. Os diálogos ágeis e ácidos ganham o espectador principalmente nas cenas em que o grupo se inicia na degustação – que apreciador já não passou por isso? Ser ridicularizado ao afirmar que um vinho, cerveja, uísque tem determinado aroma ou sabor – e durante a excursão a uma destilaria, em que o uso dos kilts causa consequências desagradáveis. O elenco central, praticamente desconhecido, tem boa empatia e convence como gauches na vida que tentam de alguma forma dar certo.

    É um filme despretensioso cujo sucesso reside na ambiguidade entre drama e comédia e que se torna bem sucedido justamente por não tentar misturar os dois gêneros e ainda assim conseguir manter o estilo do diretor, Ken Loach, e não deixar de lado a crítica social.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.