Crítica | Rambo IV
Poucas franquias contrariam tanto sua obra original, comumente a que guia capítulos subsequentes, quanto a saga de John Rambo. Não que o original Rambo: Programado Para Matar fosse exatamente contrário às ideias contidas nos três filmes realizados entre 1985 e 2008, mas a trajetória de Rambo após sua trágica incursão por seu próprio país pós-Guerra do Vietnã, culminando em sua transformação numa máquina de guerra cínica e quase mitológica, dificilmente seria imaginada por quem assistisse ao primeiro filme, cujo desfecho apresentava uma improvável sensibilidade diante das experiências de alguém treinado pra se tornar um guerreiro perfeito. Mas assim como o pragmatismo militar tão apreciado por Hollywood (mesmo quando os filmes trazem questionamentos à tona), Rambo IV faz valer a força de uma existência voltada para uma cultura bélica e empreende todo o possível pra transformar a guerra não apenas em espetáculo, mas também em uma necessidade, ou ao menos em algo inevitável.
Trazendo um cansado e desencantado John Rambo (Sylvester Stallone, que também dirigiu e co-escreveu o filme) vivendo às margens de um rio (e da sociedade) na Tailândia, sustentando-se de bicos e quietude duas décadas após a apoteose combativa que protagonizou no Afeganistão, Rambo IV rapidamente nos introduz a um grupo humanitário cristão que visa chegar a Burma para levar medicamentos e provisões à população local, vitimada por conflitos civis longe de qualquer resolução, e que pretende contratar os serviços do ex-combatente para transportá-los até a região. Inicialmente relutante, especialmente ao ponderar sobre o caráter pacifista do grupo, Rambo aceita levá-los após a intervenção de Sarah (Julie Benz), esposa do líder do grupo missionário, Michael (Paul Schulze), que o convence através de uma insuspeita demonstração verbal de altruísmo. Uma vez a bordo do barco de Rambo e rumo ao destino pretendido, não demora para que os viajantes sejam atacados por bandidos (viajavam, afinal, por uma região inóspita e hostil), pronta e brutalmente repelidos pelo protagonista, para horror dos missionários – e assim Rambo é dispensado dos seus serviços, voltando à sua vida pacata na Tailândia apenas para, pouco tempo depois, ser procurado por outras pessoas pra liderar um time de militares privados e resgatar os missionários da (previsível) situação em que se encontram após serem capturados pelos algozes (dotados de vileza ímpar, diga-se) da população que visavam amparar.
A lógica narrativa de Rambo não é absurda, e nem mesmo torpe, ao apresentar o mundo (visto pelos olhos do inativo boina verde) como um lugar onde dificilmente as coisas não são resolvidas através de violência e onde o altruísmo costuma custar bem caro, já que geralmente vem acompanhado de ingenuidade e boa vontade incompatíveis com a realidade. Poderíamos dizer que Rambo é o retrocesso em pessoa após os eventos do primeiro filme, no qual gradualmente o mundo fora da zona de guerra não oferecia lugar a alguém condicionado a se tornar alguém que só teria lugar num front, mas a verdade é que o Johm Rambo visto em Rambo é uma figura consequente e natural dos desenvolvimentos em seus segundo e terceiro filmes – de alguém desesperado para compreender como voltar à sociedade após uma guerra que não foi capaz de vencer, Rambo passou a alguém que foi ativamente em busca de guerras que seria capaz de vencer (sozinho, se fosse o caso) -, e conseguimos encarar o recrudescimento da personagem como algo aceitável, mesmo que nada agradável e até melancólico. O problema, que no filme não é apresentado exatamente como um problema em si, é que Rambo é tão capaz de justificar suas ações quanto é capaz de executá-las, e Rambo até tenta qualificá-lo como alguém disposto a encontrar outro caminho para trilhar (o que, em retrospecto, foi *deixado para a próxima* assim que o quinto filme da franquia foi anunciado), mas o fato é que o homem forjado pelo Coronel Trautman (bom personagem de Richard Crenna nos três primeiros filmes) é bom demais no que faz para que ideias de paz sejam mais viáveis do que a lógica inapelável da guerra.
Stallone, como figura do meio cinematográfico, seja como ator, roteirista ou diretor, sempre permaneceu firme na proposta de usar colarinho azul, e Rambo é um ótimo exemplo desta abordagem; estetica e narrativamente, Rambo é um filme simples e objetivo, que não se ocupa de floreios e não esconde o jogo tramando viradas e buscando surpreender o espectador com algo impensado. Assim como seu protagonista, Stallone compõe em Rambo, tanto como ator como quanto realizador, uma experiência singela, que mesmo quando propõe a aceitação de vários baluartes do cinema de ação mais reacionário (a necessidade da intervenção, a eficácia da violência, a disposição para reconhecer que o mundo inevitavelmente será pautado pela ação de quem abandona a inércia em prol da guerra justificada – seja qual for a justificativa), não se exime de apresentar o horror gráfico de um conflito. Ainda assim, mesmo que as cenas de ação sejam bem enquadradas, elaboradas e executadas pra que pareçam enxutas e sanguinolentas, é impossível deixar de notar a catarse oferecida por Rambo através da violência; quando nos lembramos que a brutalidade de John Rambo em Rambo 1 era ao mesmo tempo um recurso e um desafogo, e que gradualmente o traumatizado soldado deu lugar a alguém que acatou tudo o que não conseguia compreender e aceitar, temos a sensação conflitante de que algo genuíno se perdeu, mesmo que um novo filme tente provar que esta é a única maneira sensata de Rambo fazer parte, qualquer parte, de algo maior do que a própria lenda. Vale a reflexão acerca da facilidade com a qual Rambo mata em nome de uma causa: se não aceitarmos que ele está certo, muito além de ter ou não alguma outra escolha diante do cenário apresentado, nem toda a honestidade do mundo conseguiria tornar a violência vista em Rambo em algo digno de purificação e expiação (talvez Mel Gibson fosse o diretor ideal pra filmes contemporâneos sobre John Rambo). É revelador como as duas personagens icônicas vividas por Stallone (com o peso do mundo nas costas, embora Rocky seja bem mais humano) só se sentem confortáveis, ou ao menos bem acomodados, em meio ao nada que costuma sobrar de suas vidas outrora bem movimentadas.
Navegando rio asiático adentro entre abordagens que variam sem sair do raso entre o marketing e o horror de um conflito, Rambo é um filme competente, mesmo que seja desprovido de ferramentas que permitam uma oferta mais generosa de estofo (e algo além do espetáculo de vísceras e sangue que o filme apresenta como algo cotidiano quando se quer fazer uma diferença). E o tempo torna cada vez mais óbvio que o desespero do combatente agarrado a Trautman (seu mentor E seu superior) ao final da sua primeira aparição nas telonas se devia muito menos à constatação de quem Rambo havia se tornado, e muito mais ao vislumbre de quem ele teria de se tornar, sabendo o que sabe e fazendo o que faz, se um dia almejasse uma vida honesta (principalmente consigo mesmo). Se Programado Para Matar era um ponto de partida, Rambo IV é, ao menos provisoriamente, a lastimável e coerente chegada.
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Texto de Henrique Rodrigues.
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