Crítica | Vazante
Daniela Thomas tem filmes de cunho bastante contestador, normalmente retratando parcelas ignoradas e à margem da sociedade. Linha de Passe, que fez junto com Walter Salles, se localizava na periferia de São Paulo e mostrava o cotidiano de uma família lutando para sobreviver; Terra Estrangeira retratou a exploração de brasileiros em países europeus; e por fim, O Primeiro Dia demonstrou a rotina dos desafortunados e marginais que veem na vida bandida uma opção para subsistência. Vazante é seu primeiro longa-metragem solo, e mostra a solidão e devastação sentimental que ocorria na época de um Brasil ainda colonial, passando pela discussão da posse que os homens tinham sobre as mulheres, evidenciando ainda a escravidão dos negros africanos e seus descendentes.
Na trama, conhecemos Antônio (Adriano Carvalho), um português, sujeito de muitas posses, dono de terras e escravos, que vê o dia-a-dia de sua fazenda entrar em ruínas, por conta disso, migra pelo interior brasileiro. Ao chegar ao seu destino, sua esposa ainda grávida falece, fazendo-o abandonar bens e família. Assim, seu cunhado Bartholomeu (Roberto Audio) ao tentar remediar a situação financeira da família, acaba por perder a carga que carregava, entre elas, os escravos estrangeiros que não sabiam uma palavra sequer de português.
O núcleo familiar de Bartholomeu se põe em perigo, uma vez que não tem dinheiro para lidar com suas próprias despesas. A partir daí, o desposamento da jovem caçula Beatriz (Luana Nastas) se torna algo aceitável, já que mulheres eram vistas apenas como mercadoria. Desse modo, um novo ponto de vista é adicionado, já que Beatriz se aproxima demais dos negros que servem a casa-grande, não tendo conexão alguma com boa parte de sua família, exceto Dona Zizinha (Juliana Carneiro da Cunha), sua já senil avó.
A amizade estabelecida entre Beatriz e Virgílio (Vinicius dos Anjos) é mal construída, soando bastante gratuita em certos momentos. A observação da menina sobre a rotina terrível dos escravos faz lembrar em partes o bom filme O Abraço da Serpente, do colombiano Ciro Guerra.
Algo extra-filme fez Vazante se tornar notícia antes mesmo de entrar em circuito. Quando foi exibido no Festival de Brasília já tarde da noite, o filme havia sido ovacionado, no entanto, um dia depois passou a ser depreciado por completo, com alegações de que daria margens à um subtexto racista, por se utilizar de uma história ambientada à época da escravidão sob a ótica de uma personagem branca, desse modo, deixando de dar voz aos personagens negros do filme.
De fato, Thomas não tenta repaginar o que O Nascimento de Uma Nação fez, e o volume de análises com tons mais críticos do ponto de vista racial do filme têm transbordado os sites e jornais especializados, vez por outra ignorando a análise técnica do longa para se mirar apenas em elementos polêmicos para aumentar a discussão e angariar acessos em seus sites.
Os problemas textuais do roteiro de Daniela e Beto Amaral são muitos, em especial no que diz respeito às ambiguidades que propõe. Antônio é um sujeito que parece perturbado por algo, ao mesmo tempo em que seu código ético é absolutamente vergonhoso. Sua crença de que a culpa de sua antiga esposa ter morrido é de responsabilidade de seus servos é absolutamente injusta diante do que se mostra em cena, e falta claramente um direcionamento da história para evidenciar que tal pensamento é falacioso. Se a tentativa foi gerar ambiguidade, esta falha horrendamente, já que não há muitos elementos para que dê sustentação a essa discussão. Há também uma dificuldade em criar conexões entre personagens e os espectadores, fazendo com que mesmo as mulheres que são abusadas pelos ideais de Antônio, não causem qualquer empatia na plateia, com exceção da pena que é universal para qualquer pessoa que sofra qualquer tipo de abuso.
Mesmo as personagens que mais se aproximam de ter uma ligação real e emotiva são desperdiçadas, tanto Beatriz quanto a personagem de Jai Baptista, que são mulheres de repertório completamente diferente, mas que não possuem jornadas que conversem minimamente entre si. Apesar de não ser o manifesto racista como alguns críticos e espectadores pretendem vender, Vazante não entrega uma história sobre necessidade de liberdade ou sofrimento inevitável, imposto e resignado como foi antes vendido.
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