Review | Heroes
De começo bastante atabalhoado, com cenas em que os efeitos especiais surpreendiam pelo caráter paupérrimo, Heroes, de Tim Kring, emulava a tentativa de retratar a realidade comum do homem caso homens super-poderosos pisassem na Terra e convivessem com os meros mortais, ainda que a tal “realidade” tivesse um nível de suspensão de descrença condizente com aquela era de popularização das séries na TV americana.
O baixo índice de audiência pode ser atribuído à falta de qualidade do roteiro, com uma quantidade exorbitante de tramas paralelas e personagens genéricos. O último aspecto citado é normalmente encarados pelo corpo de fãs como algo positivo, já que serve de analogia para o mesmo problema visto nos quadrinhos de super-heróis mainstream.
A premissa envolve um misto de ciência e profecia, através da visão do “voador” Peter Petrelli (Milo Ventimiglia) e do cientista indiano Mohinder Suresh (Sendhil Ramamurthy). O cotidiano do primeiro é ligado à área da saúde, o que ajuda a estabelecer uma conexão instantânea do texto com a mortandade e impotência do homem diante da existência, aspecto semelhante ao do segundo protagonista, que tem em suas pesquisas e discursos um ideal desbravador, que se agrava com a morte de seu pai, fazendo-o rumar a Nova York para finalizar os estudos. O encontro dos dois é dado por um evento contraditório, com o doutor trabalhando na América como taxista, atendendo a Petrelli com uma conversa desencontrada e conveniente.
As motivações e atitudes dos outros personagens são bastante infantis, como as de Hiro Nakamura (Masi Oka), um nerd asiático, aficionado por Jornada nas Estrelas, histriônico e de desejos simples, cuja compleição lembra bastante a de tantos outros fãs do seriado. Sua busca é por dar vazão à sua suposta habilidade especial, tencionada por motivos ingênuos, como fugir da rotina de trabalho corriqueiro. Uma pretensão interessante, mas que se prova bastante fútil, fazendo-o adentrar o território dos Estados Unidos sem necessitar de visto.
Outra demonstração narrativa bastante torpe é a mostra de poderes de Claire Bennet (Hayden Panettiere), uma moça praticamente indestrutível, que esconde junto à identidade de seu pai adotivo Noah (Jack Coleman) um temível segredo, primeiramente sob uma ótica um pouco vilanística, mas que se inverteria depois. O drama escolar de Claire tenta adultizar um pouco o tema da série, ainda que somente arranhe a superfície da maturidade, já que o ideal é escapista, massavéio e nerd.
A apresentação dos personagens é diversificada, tendo do policial Matt Pakerman ( Greg Gunberg) como uma tentativa de alívio cômico, ao mesmo tempo em que toca em assuntos tabu graças às suas habilidades e poderes. A tentativa de mostrar algo maduro segue ao mostrar o super-humano como uma figura repleta de defeitos, re-discutindo questões éticas, como invasão de privacidade e “justiça com as próprias mãos”.
Outro poder ligado a clarividência é o do pintor Isaac Mendez (Santiago Cabrera), que, através do uso de entorpecentes, consegue prever o futuro com seus desenhos, antevendo questões primordiais como o eclipse que teria causado e evocado os poderes em todos os ditos humanos. Aos poucos, os mistérios a respeito de Gabriel Gray vão se revelando, mostrando o que talvez seja o mais denso dos personagens, com Zachary Quinto exibindo grande parte do talento que o faria famoso pouco depois do seriado. Sylar passa a ser um contraponto para a completa falta de qualidade do argumento do seriado.
A trama passa a fazer mais sentido e despertar mais interesse a partir da ida de Hiro ao futuro, onde os “especiais” estão em lados opostos, com Nathan Petrelli (Adrian Pasdar) ocupando o mais alto cargo na Casa Branca, apoiado pelo renomado cientista Morrinder, que organiza uma força-tarefa que caça os terroristas, entre eles o Nakamura futurista e os escondidos Jessica (Nicki, vividas ambas por Ali Larter) e Peter. O mundo, devastado pela autodestruição de Sylar, é um lugar sem esperança e desprovido de futuro.
O fim da temporada é anti-climático ao extremo, além de apelativo. A péssima relação de Sylar com sua mãe ajuda a explicar alguns de problemas, entre eles o começo de seus pecados terríveis, a começar pelo matricídio. Os últimos episódios conseguem enfraquecer até os momentos interessantes do ano, em especial a personagem de Beneth, cada vez mais enfraquecido por motivos banais, fator que chega a ser ignorado diante da decepcionante luta entre Hiro e Peter contra Sylar.
A segunda temporada começa bem diferente, com cada personagem em um ponto do globo ou do tempo. Diante do péssimo roteiro anterior, até as bizarrices deste ano se tornam parcialmente justificáveis. O programa ocorreu em meio a muitos problemas. A criatividade zerada é atribuída à greve dos roteiristas, ainda que a falta de substância já tenha ocorrido desde a estreia, o que não faz estranhar tanto o péssimo texto, ao menos para o espectador que ignorou o hype.
Os erros começam com o isolamento do trio de personagens mais poderosos, dando foco às histórias periféricas o que piora a situação, já que os motes levantados com Hiro, Sylar e Peter em separado são chatos enquanto a saga dos outros é somente boba. O desenrolar de fatos explora uma teoria da conspiração absurda envolvendo os seniors, reunindo pais de personagens e outras pessoas de mais idade. A tentativa de retconar o desfecho do ano anterior serve de paralelo com o erro crasso que isso significa nos quadrinhos. Heroes segue usando as HQs como inspiração, emulando principalmente os defeitos irremediáveis da nona arte.
Os roteiristas estavam perdidos de fato, e os poucos episódios são descompromissados e não levam a qualquer lugar. É como se os onze episódios fossem o season finale da primeira, mas sem os poderosos, deturpando tudo o que era interessante e defenestrando o conteúdo construído a duras penas.
O terceiro arco, Vilões, deveria ser uma inversão de valores, mas virou uma simples deturpação de ethos em nada justificada. A temporada três aconteceria sob os pedidos de desculpas de seu criador, junto à promessa de que os problemas poderiam ser sanados, o que evidentemente não ocorreu.
Sem dúvida o terceiro período anual é um dos piores momentos do seriado, ainda que a tônica seja realmente de um caráter podre de qualidade, e um dos fatores que fortifica tal aspecto é a bifurcação do folhetim, mudando até o nome do arco, para Livro 4: Substitutos, provando em si a péssima ideia que foi a de modificar o ethos de todos os personagens.
A tentativa de reverter os conceitos do sub arco Vilões faz tudo parecer ainda mais esdrúxulo, desde o eclipse mundial até a quantidade enorme de referências a cultura pop negadas veementemente por Tim Kring, seja a visita ao passado, que emulava de modo tosco os Minutemen de Watchmen – além de contradizer completamente os quadrinhos de prequel – seja o presente, com uma quantidade absurda de tramas desinteressante e irritantes. A Redenção, dita no nome do quinto volume, jamais se cumpre, ao contrário, se adicionam tons novelescos entre o terceiro e quarto ano, inclusive ressuscitando a figura de Ali Larter com uma nova personagem, Tracy Strauss, uma mulher que converte quase tudo em gelo, e que se envolve com os mesmos pares românticos de sua contraparte, e a qual tem algum parentesco misterioso com ela.
Nos momentos finais há o acréscimo de um confuso plot envolvendo o circo de Samuel Sullivan (Robert Knepper), que faz ocupar a atenção de todo o núcleo de personagens principais, fazendo alianças improváveis surgirem, como as de Peter Petrelli e Sylar. Brave New World, o capítulo derradeiro é bastante confuso, contando com ressurreições inesperadas que servem somente para aumentar o terrível circo de horrores.
Sullivan resume bem a essência de Heroes ao mostrar um vilão caricato que aparece, faz mil promessas de terror jamais cumpridas, assassina alguns e sai de cena sem alterar quase nada no status do programa, como nas piores revistas em quadrinhos antigas, o que demonstra a dificuldade de Tim Kring em copiar a parte interessante das histórias de heróis clássicos. Mesmo a atitude final de Claire, em tentar revelar suas habilidades, soa vazia, mesmo que a cena final combine com as primeiras, em um momento que deveria ser significativo e só soa desimportante e melancólico, dada toda a falta de qualidade do programa.