Tag: Xavier Giannoli

  • Crítica | A Aparição

    Crítica | A Aparição

    É interessante para nós, brasileiros, falarmos sobre o papel de um jornalista num dos países mais intolerantes do mundo para com o seu trabalho investigativo, e que por tantas vezes auxiliou a história humana a tomar novos rumos, e a conhecer novos caminhos diante de certos absurdos, e polêmicas carentes de elucidação. A revelação aqui é clara, e objetiva: o renomado profissional francês Jacques Mayano, desligado de quaisquer práticas religiosas e focado apenas nos aspectos mais mundanos possíveis da realidade das coisas, sempre envolto a livros e casos bem-sucedidos de investigação jornalística, mergulha de cabeça no caso de Ana (uma jovem noviça francesa que afirma ter contato com a própria Virgem Maria), após requerimento do próprio Vaticano para que ele se envolva nos desafios dessa premissa, e dela venha a retirar a verdade como já está habituado de fazer.

    Nada mais do que a verdade, e da maneira mais confidencial possível. Nas mãos de Hollywood, com certeza esta seria uma oportunidade perfeita para brincar com os típicos arquétipos do Cinema de horror, ou melhor, mais uma das intermináveis homenagens (e plágios não-oficiais) de O Exorcista, clássico de 1973. Contudo, A Aparição se beneficia por demais de uma visão mais cult e intelectualmente instigante da relação entre um homem mundano, e a fé, sem exageros ou algo do tipo. É notável o quanto o filme, contido em sua plenitude, consegue criar e manter, fluindo por sua trilha-sonora e no seu inteligente uso de simbologias religiosas, uma aura tanto mística quanto de interesse por sua história de inegável sobriedade artística quanto a direção que a trama vai tomando, no desenrolar constante das verdades que Jacques extrai de um novo mundo, para ele.

    Um mundo em que qualquer evento sobrenatural não é visto com tanta surpresa e estranheza, assim. Ao passo de sua aceitação do trabalho, Jacques, junto de outros jornalistas encarregados do mesmo, mantêm relações com as provas da existência de um sagrado de uma forma que prontamente eles sequer imaginaram vir a passar. Tal situação vai ao encontro de uma moral jornalística que faria qualquer profissional da área delirar com as possibilidades que um caso desses oferece, e com o nosso protagonista não é diferente. Mesmo não acostumado com esse universo “assombrado” pelo “inexplicável”, Jacques usa de sua paixão pelo ofício e age como arqueólogo trilhando as veredas (e as incertezas) de um atraente desconhecido. Tanto que podemos ver nos olhos do ator Vincent Lindon (de O Valor de Um Homem), em ótima atuação, o quanto o cristianismo pode ser um mar insondável e traiçoeiro aos que nele ainda estão aprendendo a nadar.

    O que fazer, que medida tomar diante do que não pode ser cientificamente comprovado, mas que se manifesta diante de olhos despreparados ao manifesto? Eis o dilema que desafia o ceticismo do homem, e a imparcialidade do profissional. Tal roteiro, que passa a evocar cada vez mais a curiosidade do jornalista e sua desconfiança por vezes para com a veracidade dos fatos, quase não dá margem para o lúdico e o poético que tanto habitavam, intrínsecos, os espetaculares e antigos filmes de viés religioso de Luis Buñuel, por exemplo, o que de maneira alguma é algo prejudicial. Ao invés de injetar realismos no sobre humano, aqui temos o contrário, mixando até o final o que pode ser irreal dentro da lógica da realidade, através de uma bela ótica cinematográfica que pouco se vê na produção contemporânea fora do cenário europeu.

    Quando Anna, a garota santificada pelos olhos da igreja e parte do mundo vai até um shopping, experimenta então o ambiente do fútil pela primeira vez. O consumismo que verte dos manequins e que faz as pessoas tão reféns de suas compras, quanto a mesma do seu contato com o sagrado. Já quando Jacques a vê, vê nela exatamente isso: uma garota normal nesse mundo moderno e frio, cuja missão que diz ter é grande demais para seus ombros amparados apenas pela fé do que ela diz ser real; quase palpável. O filme de Xavier Giannoli se interessa pela investigação do intangível, e do improvável, enquanto elementos que desnorteiam a nossa percepção da realidade. É justamente especulando a existência do que vai além das nossas certezas que A Aparição se constrói como um verdadeiro suspense dramático sobre a relação imprevisível, simbólica e por vezes tensa que o ceticismo pode viver casando-se com o oposto que tanto o atrai, e que pode vir a consumi-lo por inteiro. A luta de poderes é grande, e da forma elegante como o filme a constrói, de fato chega perto do grau de excelência almejada que se propõe, desde o início, a alcançar.

    https://www.youtube.com/watch?v=EXjvWjGXFTY

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  • Crítica | Marguerite

    Crítica | Marguerite

    MARGUERITE-movie-poster

    Com roteiro e direção de Xavier Giannoli, e tomando como inspiração a vida da “diva do grito”, a cantora norte-americana Florence Foster Jenkins, o filme conta a história de Marguerite Dumont (Catherine Frot) – uma dama da aristocracia francesa dos anos 20. Assim como Florencee se dedicava à música clássica sem o menor talento para tal, Marguerite é apaixonada por música e ópera, e há anos canta com certa regularidade para um grupo de conhecidos. Qualquer espectador com um mínimo de “ouvido” para música terá o impulso de se proteger, tapando-os, ao ouvi-la cantar(?) numa apresentação logo no início do filme. Mas a mesma pergunta que o público se faz é feita pelos dois penetras dessa festa: “Por que todos a ouvem como ouviram a Por que todos fingem apreciar e ainda aplaudem? Enfim, por que ninguém lhe diz o quanto ela desafina?”.

    Numa versão adulta da fábula infantil “A roupa nova do rei”, logo se percebe que seu círculo de amizades não conta a verdade para não perder “a boca livre”, os convites a suas festas e a seus eventos beneficentes em que ela é sempre incentivada a cantar. E o mundo de aparências se estende a seus empregados, aos músicos que a acompanham, a outros artistas que participam dos mesmo eventos, ao professor contratado para ensaiá-la. Todos com seus próprios motivos para mentir – ou omitir. Seu marido, Georges (André Marcon), até então conivente, insiste com o mordomo, Madelbos (Denis Mpunga) que devem parar com a farsa – que incluía dezenas de flores enviadas nos dias seguintes a seus recitais, em (suposto) agradecimento – e contar-lhe a verdade. Porém Madelbos – que além de mordomo e motorista, era o fotógrafo de Marguerite em sua extensa coleção de figurinos originais de ópera – com sua fidelidade canina a Marguerite segue contratiando o patrão e perpetuando o engodo.

    E, à medida que o filme avança, e vemos Marguerite preparando-se para uma apresentação grandiosa, fora do seu círculo de conhecidos, outra pergunta surge: “Será que Marguerite não percebe o quanto desafina? Será que ela acredita mesmo que canta bem? Ou será que tem consciência da sua ausência de talento? Mas, se tem consciência, qual sua motivação? Apenas alimentar seu ego?”. E em certo ponto, o publico até se pergunta se ela é maluca e se tudo não é parte de seus delírios, de suas fantasias. A atuação de Frot encaixa-se perfeitamente, fazendo Marguerite ultrapassar, sem exageros, a linha entre o real e o surreal. E sempre deixando um traço de dúvida sobre a sanidade da personagem.

    Sendo uma comédia – e também pelo ridículo das cantorias de Marguerite – a fotografia poderia facilmente ter caído para o brega, para o deboche, mas optaram por algo mais sombrio e desolador. A palheta dessaturada, os espaços vazios na casa, a abundância de espelhos, o excesso de badulaques em alguns cômodos deixam o ambiente opressivo e melancólico. É como o espectador se sente após as apresentações desastrosas de Marguerite. Mesmo se talvez ela nem perceba o constrangimento a que se expõe por sua falta de talento, o público se sente mal por ela. É triste vê-la ser falsamente elogiada. Mais triste ainda é vê-la acreditando nas mentiras. Mas enfim, será mesmo que acredita?

    Os figurinos e a trilha sonora são ótimos complementos à direção de fotografia e ao roteiro. Contudo, apesar de o roteiro conseguir ganhar o espectador com a história de Marguerite e cativá-lo com várias piadas envolvendo personagens secundários, é com esse personagens secundários que reside um problema: eles são apresentados, participam de algumas cenas interessantes e até importantes para a trama e depois são deixados de lado. Talvez não fosse intenção do roteirista mostrar, mas não se sabe o destino de Hazel (Christa Théret), a cantora amadora que faz uma substituição em um evento de Marguerite e aparece cantando uma ou duas vezes depois. Ou de Kyrill Von Priest (Aubert Fenoy), o poeta anarquista-bolchevique que vê em Marguerite um modo de enfrentar o status quo. Mesmo Lucien Beaumont (Sylvain Dieuaide) parece ser reintroduzido na história – para sumir em seguida – apenas como uma muleta narrativa.

    A trama é mais trágica que cômica. E o desfecho, onírico e simbólico, talvez não agrade a parte do público, que reclamará de um final em aberto, o qual pouco ou nada explica – ou encerra. Mas com certeza completa satisfatoriamente o arco dramático da história.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.