Que 2016 foi um ano desgraçado, em diferentes níveis, estamos todos cansados de saber. Mas, por incrível que pareça, o mundo dos animes parece ter sido poupado, ao menos parcialmente, desse caos todo. Nos cinemas, foi o ano em que Makoto Shinkai se firmou definitivamente como uma das mais importantes figuras do meio, quebrando com seu Kimi no na wa todos os recordes de público previamente estabelecidos pelo estúdio Ghibli, o que lhe concedeu o título de animação de maior bilheteria da história do arquipélago. Foi também o ano de sanar expectativas de longa data, com as há muito aguardadas estreias de Kizumonogatari e Koe no Katachi. Já na televisão, foram quatro temporadas de estreias diversas, algumas decepcionantes, outras bastante boas – e é dessas últimas, ou, mais precisamente, das que considero as dez (na verdade onze) melhores entre elas que eu gostaria de falar a seguir.
10. Boku dake ga Inai Machi
Histórias de viagem no tempo são fáceis de gostar. Porém, tão simples quanto embarcar numa jornada dessas, é perceber as falhas e deslizes cometidos ao longo do trajeto – deslizes esses dos quais poucas tramas desse tipo conseguem escapar. Boku dake ga Inai Machi, adaptação de um mangá homônimo (encerrado quase simultaneamente a animação), é exemplo recente desse dilema: a empreitada de um homem de 29 anos que, tendo a habilidade de voltar no tempo em certas ocasiões (habilidade que nunca é explicada, diga-se de passagem), precisa regressar a sua infância para impedir um serial killer, começa muitíssimo bem, mas se perde aos poucos ao longo de seus 12 episódios.
Contudo, as indisfarçáveis falhas do anime, como o fato da identidade do assassino se tornar bastante obvia antes do que deveria ou sua conclusão no mínimo piegas, não bastam para eclipsar suas também inegáveis qualidades: um cast forte e carismático de personagens, boas reviravoltas e decisões estilísticas inteligentes tomadas pelo diretor Tomohiko Itou (como a mudança de proporção de tela que serve para distinguir as cenas que se passam no presente das ambientadas no passado) são o suficiente para garantir seu lugar entre os títulos que marcaram o ano.
9. Uchuu Patrol Luluco
Se há um lugar em que as mais inventivas mentes da indústria da animação japonesa estejam hoje reunidas, esse é sem dúvida o estúdio Trigger, e Uchuu Patrol Luluco é um microcosmo que, partilhado em 13 episódios de apenas 7 minutos cada, reflete com exatidão a dimensão do potencial criativo dos talentos que ali se encontram. Co-dirigido por Akira Amemiya, responsável por Inferno Cop e Ninja Slayer, duas divertidíssimas animações de curta duração, e sob a coordenação geral de Hiroyuki Imaishi, que já nos trouxe Tengen Toppa Gurren Lagann e Kill la Kill, essa pequena série, que transita entre o humor nonsense e o romance adolescente, é um passeio pelo pequeno, porém imponente catálogo de títulos do estúdio, não apenas por contar com a participação especial de personagens de outros shows por ele produzidos, mas também, e principalmente, por tudo o que pode oferecer em termos de animação e ideias visuais. Talvez por isso mesmo seja um anime sobre o qual é tão difícil falar: é algo que precisa ser visto.
8. Hibike! Euphonium 2
Poucas sequências são tão eficazes quanto a de Hibike! Euphonium: ela parte exatamente de ontem a história foi deixada e faz com ela exatamente o que deveria ser feito. Mas, se a manutenção da qualidade (sobretudo técnica, uma vez que falamos de uma produção do Kyoto Animation) já era algo esperado, os rumos tomados na parte temática foram positivamente surpreendentes. Continuamos a acompanhar a trajetória de uma banda escolar desacreditada rumo à competição nacional, mas, nessa nova fase, os dilemas enfrentados pelas integrantes do grupo se afastam um pouco do rotineiramente visto em um slice of life escolar – fato que pode ter decepcionado os que esperavam por algum desenvolvimento amoroso padrão, mas que certamente deixou contente quem ansiava por qualquer coisa que fosse para além disso.
Com um final agridoce, que coroa uma experiência permeada pela melancolia, apesar de alguns momentos de humor e das sempre impressionantes sequências musicais, essa segunda temporada consegue ainda o feito de ser conclusiva, isso sem esgotar as possibilidades do enredo. Em suma, Tatsuya Ishihara e sua equipe terminaram de contar uma história aqui. Não é necessário que eles deem continuidade a ela. Mas eles podem fazê-lo, caso queiram. E seria ótimo se assim quisessem.
Sangatsu no Lion
Considerando que mais de ¼ desta lista consiste em animes de esporte, parece seguro supor que 2016 foi um bom ano para o segmento. Contudo, assim como Yuri!!! on Ice é antes sobre romance que sobre patinação, 3-gatsu no Lion, adaptação do mangá de Chika Umino (também autora do excelente Honey & Clover, lançado no Brasil anos atrás pela editora Panini), é bem mais um detalhado estudo da depressão de seu protagonista adolescente, Kiriyama Rei, que uma história sobre shogi, esporte que o personagem principal pratica profissionalmente. Ainda que não consiga fugir dos maneirismos inerentes ao estúdio Shaft (companhia que demonstra estar tão dominada pela marca de seu principal realizador, Akiyuki Shinbou, que parece querem adequar todo e qualquer material, independente de suas nuances, a um mesmo padrão estético), o anime, único da lista que ainda está em exibição, tendo entrado há pouco em seu segundo cour, merece atenção pelas emoções fortes, e muitos vezes conflitantes, que é capaz de despertar.
7. Natsume Yuujinchou Go
Foram mais de três anos sem novos episódios de Natsume Yuujinchou. Algumas coisas mudaram nesse tempo; outras, continuam as mesmas. Desde sua primeira temporada, exibida em 2008, o anime passou por transformações. O estúdio Brain’s Base sofreu uma debandada de membros, que fundaram o Shuka, atual responsável pela produção, e a série perdeu o talento de Takahiro Kishida, único responsável pela animação dos encerramentos das quatro primeiras temporadas. Mas a qualidade das histórias contadas – histórias que, apesar do pano de fundo sobrenatural, sempre acabam tratando do que há de mais humano em seus personagens –, e sua capacidade de tocar o espectador, permaneceram intactas.
Em se tratando de animação, ou de qualquer outra indústria, existem bons e maus anos. Mas parece-me que, sempre que houver uma nova temporada de Natsume, ela terá lugar cativo em minha lista de destaques. E, tendo sido a 6ª já anunciada para 2017, deve dizer que estou otimista quanto ao futuro.
6. Fune wo Amu
Já vi um ou dois desenhos na vida, mas nenhum com uma premissa tão desinteressante quanto Fune wo Amu: a saga de um departamento editorial lutando para concluir um grande dicionário. Mas se não se deve julgar um livro pela capa, tampouco é aconselhável taxar uma história por sua sinopse. Não que, ao término desses 11 episódios, vá-se ter vontade de devorar o Houaiss que só faz acumular pó na prateleira, mas você talvez repense a função de tal livro e a natureza do trabalho dos profissionais que o confeccionaram.
Esse é, acima de tudo, um anime sobre comunicabilidade. Sobre como encontrar as palavras certas para alcançar os demais e como melhor compreender aquelas ditas por eles. Com grande atenção aos detalhes, principalmente em sua animação de personagens, que, embora não solte aos olhos, confere a eles grande expressividade, a série me fez querer repetir a todos uma única palavra: assistam!
5. Mob Psycho 100
Surgindo na esteira do sucesso de One Punch-Man, esta nova adaptação de um trabalho do mangaká ONE, uma vez mais entregue pelo estúdio Bones, não só não mede esforços para não ficar à sombra de seu antecessor, mas parece fazer de tudo querer superá-lo em termos de inventividade. No aspecto visual, estamos falando do grande vencedor do ano passado: começando pelo design de personagens e consistência na direção de animação de Yoshimichi Kameda, e passando por cenas não menos que antológicas animadas por alguns dos maiores nomes da indústria, como Yutaka Nakamura e Norio Matsumoto, além de contar com a inserção no mercado de novos e promissores talentos, como Yuki Igarashi e Sara Moroyuki, Mob Psycho 100 é um tour de force para qualquer um que goste de ver desenhos em movimento, o que, por si só, é motivo mais que o suficiente para que ele seja visto.
4 – Haikyuu!!: Karasuno Koukou VS Shiratorizawa Gakuen Koukou
Após duas temporadas de dois cour, com 25 episódios cada, recheados com diversos jogos e uma longa curva de evolução de personagens, a terceira temporada de Haikyuu!!, adaptação de um dos mais populares títulos da atual Shonen Jump, chegou com um formato diferente e até mesmo desafiador: apenas dez episódios, que englobariam uma única partida de vôlei. Dada essa proposta, pareciam só haver dois caminhos: ou veríamos algo pra lá de arrastado ou um verdadeiro épico. Agora, findada a exibição da série, me arrisco a dizer que todos os seus espectadores concordam que ela acabou por trilhar o segundo caminho.
Por se tratar do confronto final de um torneio iniciado na season anterior, mas já anunciado desde idos da primeira temporada, tudo nesse embate tem um caráter de conclusão – vemos arcos de personagens sendo fechados, vemos as frustrações de derrotas passadas se transformarem em lições que ajudam a pavimentar o caminho da vitória. Essa é uma das raras continuações que trazem consigo não apenas parte, mas todo o peso dos acontecimentos pregressos; foram exatos 60 episódios até que chegássemos a esse ponto, e é como se, de fato, tivéssemos acompanhado um time pequeno, desacreditado, erguer-se ao ponto de enfrentar o aparentemente invencível campeão. A tensão e a emoção que pairam no ar até o último apito é real, palpável, como se esses time de fato existissem, como se algo muito importante estivesse em jogo. Particularmente, não acho que haja elogio maior para um anime de esporte.
3 – Yuri!!! on Ice
O anime certo no momento certo. Em tempos de profunda mudança na relação do público com os produtos de entretenimento, tempos em que diversidade e representatividade são cobradas como nunca antes, surge um anime criado por duas mulheres de grande talento, Sayo Yamamoto, responsável pelo ótimo Michiko to Hatchin (que, aliás, foi idealizado após uma viagem da diretora ao Brasil, e que está repleto de referências a nossa cultura), e Mitsurou Kubo, mangaká que forneceu o conceito original e o character design do projeto, que narra a história de amor e superação de dois patinadores. O resultado? Um estrondoso sucesso, em mais de um sentido.
Yuri!!! on Ice provou ser um dos animes com maior poder de engajamento já exibidos na era das redes sociais, conseguindo atingir um público em geral não relacionado com animação (entre eles, muitos patinadores profissionais), em grande parte por conta de seu uso inteligente de ferramentas como o Instagram. Com um design de produção rico em detalhes, sobretudo no que diz respeito aos figurinos dos personagens, e uma gama de belas coreografias, que refletem com exatidão as personalidades de seu diversificado elenco, o título, apesar de alguns problemas técnicos difíceis de ignorar, ainda mais no que diz respeito a gradual queda da qualidade da animação, é um dos grandes acertos de 2016, independente de escolhermos um viés temático, mercadológico ou simbólico para analisa-lo.
2 – JoJo’s Bizarre Adventure Part 4: Diamond is Unbreakable
Menos é mais. E Diamond is Unbreakable, quarta fase de JoJo’s Bizarre Adventure, é um dos exemplos que fortificam essa máxima. Aqui, em vez de batalhas épicas que põem em jogo o destino do mundo, acompanhamos eventos em uma escala muito reduzida, envolvendo apenas o estranho cotidiano da fictícia cidadezinha de Morioh, habitada por um igualmente estranho – e carismático – grupo de personagens.
Uma dos pontos fortes da franquia é, sem dúvida, sua capacidade de contar histórias completamente diferentes sem sacrificar a coesão de um universo que se expande a cada nova saga, e em nenhum lugar isso fica mais patente que em DiU. Trata-se de uma continuação, personagens e elementos apresentados em Battle Tendency e Stardust Crusaders, respectivamente as partes 2 e 3 da franquia, exercem papel central na trama, mas é também uma abordagem diferente de tudo o que fora anteriormente apresentado, em que os pequenos causos, os arcos de dois ou mesmo de um único episódio são mais significativos que a grande trama que acaba por se descortinar no terço final da série. E é essa capacidade de sempre apresentar algo novo, ainda que com uma roupagem já conhecida, que faz dessa sequência de adaptações da obra de Hirohiko Araki, promovida pelo David Production, uma das melhores coisas que aconteceram ao mundo dos animes nos últimos tempos.
1 – Shouwa Genroku Rakugo Shinjuu
Duvido que, há pouco mais de um ano, antes de sua estreia na temporada de inverno de 2016, alguém pudesse falar com honestidade que esperava ansiosamente por Shouwa Genroku Rakugo Shinjuu. Mas acredito que, passado esse tempo, qualquer um que o tenha assistido possa fazê-lo a respeito de sua continuação, lançada algumas semanas atrás. Mais que uma boa surpresa, essa adaptação do mangá de Haruko Kumota (finalizado em idos do ano passado, com 10 volumes), é o tipo de obra que nos faz pensar em quantas grandes histórias ainda estão por aí para serem contadas.
Rakugo é uma centenária vertente do teatro japonês, baseada no monólogo, em que uma única pessoal representa todos os personagens. É uma tradição oral, e seus intérpretes são contadores de histórias que devem decorar, de forma minuciosa, uma grande variedade de peças. Embora tenha outrora gozado de grande popularidade, tal arte entrou em franca decadência no século XX, sobretudo no após a Segunda Guerra, com a ocupação americana e a disseminação de variadas formas de entretenimento no país. O anime, que abrange um período de mais de meio século, narra, por meio de uma cadeia correlacionada de personagens, esse movimento descendente da apreciação do rakugo e a luta de seus admiradores para mantê-lo vivo.
A trajetória de uma arte decadente, um acurado retrato das transformações culturais do Japão pós-guerra e um dos melhores dramas animados da década, Shouwa Genroku Rakugo Shinjuu impressiona não só pela densidade do texto, mas também pela entrega do mesmo, uma vez que o time de produção, desde o diretor, o pouco experiente, mas promissor Shinichi Omata, até os seiyuus (dubladores), se emprenham ao máximo para tornar essa experiência, que, a primeira vista, poderia parecer entediante, em uma das mais emocionantes que a mídia é capaz de fornecer.
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Texto de autoria de Alexandre “Noots” Oliveira.
Essa lista me fez lembrar de um comentário que li, a alguns anos, de um desenvolvedor de games americano que vivia no Japão. Parafraseando-o: “O Anime está morto. Antigamente anime era sobre protagonistas com currículos incríveis enfrentando dificuldades impossíveis para salvar o dia. Hoje anime trata de homens patéticos e menininhas bonitinhas que querem dar para esses homens patéticos.”
Lendo essa lista, me parece que já chegamos em outra época do anime. Eu nunca poderia imaginar que um escritor teria a brilhante ideia de criar um anime sobre a feitura de um dicionário. Parece que o anime atual, pós 2010, trata somente de profissões chatas e atividades corriqueiras. Como deve ser um anime sobre a vida de um servidor público?