Nas últimas décadas tem ficado cada vez mais natural, ao citar determinada obra, especificar exatamente qual a versão e a plataforma você procura referenciar. Praticamente tudo que ainda não é, vai acabar virando transmídia se tiver a oportunidade. Todo livro vira um filme, todo jogo vira série, toda série vira camiseta e filtro do Instagram. Todo filme vira um outro filme e depois se transforma em jogo e quadrinho, e por aí vai… Se, por um lado, a humanidade parece ter atingido um bloqueio criativo, por outro, boas obras de cultura pop tem atingido um público cada vez maior graças a este efeito de reciclagem. Um dos bons exemplos de uma obra reenergizada por esse reaproveitamento é The Witcher.
Em um mundo povoado por seres mágicos, monstros repugnantes e bestas selvagens, a humanidade certamente não ocupa a posição mais alta na cadeia alimentar. Quando o império belicoso de Nilfgaard rompe o acordo de paz e marcha para devastar o reino vizinho de Cindra, a rainha Calanthe ordena a evacuação de sua neta, Cirilla. Refugiada, sem poder confiar em ninguém e seguindo as orientações de sua avó, Cirilla procura por Geralt de Rivia, um dos poucos bruxos ainda existentes e que é seu tutor por juramento. Geralt, um tipo de mutante guerreiro especializado em caçar monstros e remover maldições, precisará enfrentar uma série de desafios para se reencontrar com a princesa e acabará por descobrir que os piores monstros que existem, muitas vezes, não têm origem sobrenatural.
The Witcher, série americana original da Netflix, é uma adaptação dos livros escritos pelo polonês Andrzej Sapkowski. A produção, dividia em 8 episódios, estreou em 20 de dezembro de 2019 na plataforma vermelha com Henry Cavill no papel do personagem principal. As histórias de Geralt ficaram famosas para o grande público através dos jogos produzidos pela também polonesa CD Projekt Red, que tiveram boas avaliações e recentemente, graças à serie, voltaram a apresentar números expressivos de vendas. Os livros de Sapkowski, bastante populares na Polônia, constantemente baseiam as aventuras do bruxo em lendas existentes no folclore local e por isso parecem tão originais para o restante do mundo.
Antes de enaltecer todos os pontos positivos (que não são poucos) da série, é importante esclarecer um ponto que sempre foi falho na franquia graças à tradução do polonês para o inglês que baseia as demais versões. O termo polonês que designa aqueles que, como Geralt, treinaram e sofreram mutações para enfrentar monstros é “wiedźmin“. O termo é um neologismo criado por Sapkowski baseado na palavra “wiedzma” que quer dizer, esta sim, bruxa (em inglês, “witch“). Assim como “wiedźmin“, a palavra “witcher” não aparece em dicionários de língua inglesa mas, tal qual a original, sua raiz aponta para alguém que pratica bruxaria, o que não é o caso de Geralt. Em português, o jornalismo de games trata a laia do riviano, na brincadeira, como os “bruxeiros” e essa palavra realmente parece expressar melhor a essência desse tipo de personagem. Ele possui alguns poderes que, a princípio, podem parecer bruxaria mas ele não é um bruxo stricto sensu.
Apesar de ser bastante popular na Polônia, a coletânea de contos que narram as aventuras ficaram famosas mundo afora apenas depois do lançamento dos jogos produzidos pela CDPR (produtora do recente fiasco Cyberpunk 2077). Como informado pela própria Netflix, antes mesmo da estreia do primeiro trailer, os roteiros desenvolvidos pela equipe de Lauren Schmidt basearam-se nos livros e não no roteiro dos jogos mas isso não parece inteiramente verdadeiro. Levando em consideração o que acontece durante os episódios é possível afirmar, no mínimo, que os jogos parecem adaptar bem os livros originais, dados os claríssimos paralelos entre os dois produtos que o jogador vai conseguir estabelecer com facilidade enquanto assiste a série.
A relação de Geralt com seus interesses amorosos e com o cavalo que o acompanha são bastante semelhantes nas duas adaptações. Todo o cenário de xenofobia e racismo também é bastante comparável em ambas as obras e o irritante e encrenqueiro Jeskier também vive interferindo nas decisões de Geralt e colocando-o em situações delicadas no jogo. O personagem, como o caçador especializado que é na série e nos games, procura sempre investigar o inimigo e se preparar para a batalha, traçando um plano antes de cada luta com um monstro diferente, e eles não são poucos. As cenas em que Geralt utiliza seus poderes mutantes e que ele tenta renegociar a recompensa por um contrato também aparecem como gratas referências que, se não estão presentes no original, destacam-se como bons tapinhas nas costas dos gamers que estiverem assistindo a série.
Todo o figurino e cenários da série são, estes sim, claramente baseados nos designs da CD Projekt Red e a fotografia da série é lindíssima. Os personagens reconhecíveis nesse intercâmbio série/jogo também são extremamente parecidos, com uma única alteração que não parece ter causado o alvoroço que outros casos protagonizaram na internet (como a Dominó negra de Deadpool 2, por exemplo). Exceção ao pingente no colar de Geralt, que traz o lobo de Kaer Morhen em um design completamente diferente do mostrado no terceiro jogo, toda a equipe de figurino da Netflix parece ter feito laboratório com os designers da CD Projekt e isso é mais um ponto positivo para a série.
Além da fotografia lindíssima (que remete a O Senhor do Anéis), The Witcher ainda apresenta uma trilha sonora bem trabalhada. Os temas de fantasia (que também lembram os do épico de Peter Jackson) são bem posicionados e embalam a viagem por paisagens ora belíssimas, ora nefastas e empolgam durante as batalhas. A trilha ainda dá direito à um tema que enaltece, da forma que apenas um bardo medieval poderia fazer, as façanhas do Lobo Branco. Dê o play abaixo e corra o risco de cantarolar o tema por, pelo menos, o resto da semana.
Apesar de ter sido baseada em uma coleção de livros pouco populares por aqui, a série parece exigir um certo conhecimento prévio sobre, pelo menos, o personagem principal. Essa é, na verdade, a única crítica principal ao roteiro: ele explica muito mal o que é um bruxo e porque ele é diferente dos outros seres humanos. Durante os episódios, vemos Geralt lançar mão de suas famosas poções de bruxo e utilizar sinais que alguns podem confundir com um “force push” (e até um “force influence”, em um episódio) dos cavaleiros jedi de Star Wars. Sem explicar, exatamente, como o treinamento desse tipo de guerreiro acontece e o que ele engloba, fica parecendo que Geralt e os outros bruxos nasceram desta forma e isso não é verdade. Um “witcher” adulto só chega à maioridade através de muito treino e uma porção de sorte, mas a série parte do princípio de que o espectador já sabe disso ou que isso não é relevante. A evolução da guilda de magos e de como a verdadeira magia de Sapkowski funciona no universo de The Witcher ocupa uma parte considerável dessa primeira temporada e apesar do que a série tenta deixar aparente, a magia das guildas não possui nenhuma relação com os poderes do protagonista.
No quesito atuações, a série entrega um excelente produto. Cavill (o Superman das mais recentes adaptações de Zack Snyder) entrega um Geralt de Rivia bastante fiel à sua contraparte nos jogos. Tal qual o personagem que interpreta, Cavill possui apenas resquícios de sentimentos humanos e mais parece um androide. Nesse sentido, graças a sua falta de habilidade para interpretar um ser humano complexo, eu diria que o britânico nasceu para este papel. As cenas de luta envolvendo Cavill e outros personagens (humanos ou não) são, em sua maioria, bem coreografadas com especial destaque para a luta no final do primeiro episódio. A inglesa, de ascendência indiana, Anya Chalotra fica encarregada de dar vida a Yennefer de Vengerberg, e também toma de assalto suas cenas do meio para o final da série. Yennefer é uma poderosa e vingativa maga, que tem um papel central na trama e acaba se tornando um agente condutor que baliza toda a sequência de eventos na série. A transformação, não apenas física, que acontece com Yennefer é conduzia com maestria por Chalotra que também sai deste review como um dos pontos positivos da série. A jovem Freya Allan, que vive a princesa Cirilla de Cindra, entrega pouco durante a primeira parte e tem algumas atuações típicas de séries juvenis em momentos de carga emocional mais elevada e, portanto, não conta como um destaque positivo no casting da série. O mesmo pode-se dizer de Joey Batey, que interpreta o encrenqueiro bardo Jeskier. Como alívio cômico, o personagem não funciona na maioria das vezes, apesar de compensar interpretando as canções de forma bastante afinada.
Com efeitos visuais por vezes impactantes mas, num geral, nada extraordinários, a série se destaca como uma excelente adaptação das aventuras de Geralt de Rivia. De fotografia e trilha sonora impecáveis, com atuações dentro da média do que geralmente é entregue pelas séries originais da Netflix e um roteiro elaborado de forma inteligente e corajosa, The Witcher desponta como uma excelente alternativa de binge-watch. Com segunda temporada já confirmada pela produtora, a série é fortemente recomendada para quem já leu/jogou e, ainda mais, para quem nunca ouviu nada sobre os feitos extraordinários do Lobo Branco de Kaer Morhen.