Estreia do diretor britânico Steve McQueen, Hunger (Fome) se passa na prisão de Maze, onde os prisioneiros condenados por participar de ações terroristas do IRA eram levados. A história se passa em torno de Bobby Sands, (Michael Fassbender) um combatente do exército republicano irlandês, que lidera um movimento a fim de conseguir o status de “prisioneiro político” ao invés de prisioneiro comum, o que o governo da então primeira-ministra Margaret Thatcher se recusa a fazer.
Mais do que um filme político, Hunger evita todos os clichês e se foca somente nos detalhes e nas características comuns de cada um dos personagens do filme, sejam os detentos, sejam os guardas. Tentando ao máximo fugir da panfletagem, McQueen consegue desenvolver uma narrativa onde importa mais discutir as motivações por trás dos atos daqueles guerrilheiros do que qualquer outra coisa.
Usando uma estética da violência para se estabelecer o padrão das relações naquele ambiente, o filme não poupa o espectador de uma brutalidade crua e fria, mas que provavelmente choca mais os habitantes de outro país do que do Brasil, onde já estamos habituados ao tratamento desumano de nossos presídios, o que desumaniza também a sociedade e seus agentes do micro-poder responsáveis pela manutenção deste ciclo. As sequências mostrando o cotidiano paranoico de um guarda da prisão ao olhar minunciosamente o carro e sua rua, procurando por ameaças antes de ir trabalhar, mostra como a violência infligida ao outro sempre acaba por violentar também seu executor. Outra sequência também de tirar o folego é quando o batalhão de choque é chamado para conter uma revolta dos prisioneiros. Extremamente bem filmada, a cena consegue passar um realismo e uma ferocidade raras no cinema.
Porém, sabiamente, Hunger não se limita a somente mostrar a violência. Há outros condutores de relacionamento. Depois de estabelecida a dinâmica do presídio, McQueen se volta para estabelecer as motivações por trás dos guerrilheiros do IRA. Vindos de uma Belfast onde todos se conhecem e frequentaram as mesmas igrejas, escolas e lugares públicos, Sands encontra-se com um Padre, onde explica sua próxima ação a fim de minar a credibilidade dos britânicos: uma greve de fome iniciada em sequência, com intervalos de dias entre os prisioneiros, onde ficaria impossível monitorar todos. Em um belíssimo plano-sequência de 16 minutos, o Padre Dominic Moran (Liam Cunningham) tenta, em vão, convencer Sands da loucura que seria impor aos amigos e família tal sofrimento. Mas Sands, em uma argumentação extremamente convincente e elaborada, fruto de uma imensa reflexão e ideologia beirando o fanatismo, se mostra irredutível.
O terceiro ato é a consumação da greve de fome, onde somos forçados a ver agora um ato de uma violência auto-infligida de Sands em si mesmo, onde ele mostra ao mesmo tempo que é dono de seu corpo, e o sofrimento físico causado pelos britânicos naquele período de encarceramento não representam nada. A entrega de Fassbender ao papel também merece destaque, já que o ator, que já era magro, precisou emagrecer ainda mais 16 quilos a fim de gravar as cenas finais, onde Sands agoniza. Ele morre, junto de outros companheiros. O governo britânico não dá o status de prisioneiros políticos ao grupo, mas concede outras melhorias a fim de acabar com a greve e a pressão internacional. Se ao menos Sands não consegue seu objetivo principal, consegue, ao doar sua vida a uma causa, transformar seu corpo e sofrimento em panfleto político e expor ao mundo o que estavam passando, expondo também o autoritarismo dos anos Thatcher.
Hunger se mostra então um filme sobre violência, das mais diversas formas, usadas pelos mais diversos pretextos, e como ela pode ser usada como forma de discurso. O principal mérito do filme, no entanto, é não se deixar cair em melodramas, ao executar com perfeição as cenas dramáticas com uma tonalidade séria, sem músicas que forcem o choro, que tentem exagerar ou mesmo diminuir o nosso sofrimento ao testemunhar tais atos. Dessa forma, é um filme corajoso, frio, e que nos tira do nosso lugar comum com uma brutalidade necessária para nos chacoalhar nesses tempos tão cínicos e insensíveis a dor do outro e a dor altruísta.
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Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.