Um pouco distante da temática que o fez ganhar notoriedade – ligada e muito à questão racial e sempre pelo olhar do negro, citando Preciosa e O Mordomo da Casa Branca – Lee Daniels aborda questões de interesse público e privado, sob uma estética bastante semelhante às andanças de Jack Kerouac e aos poemas de Allen Ginsberg. O roteiro de Obsessão é baseado no livro de Pete Dexter, lançado no Brasil como Paperboy – Não Existem Homens Íntegros (compre aqui). É interessante como tanto o subtítulo do romance quanto a tradução do nome do filme expressam bastante o espírito da película, resumindo algumas das questões apresentadas no roteiro do autor e do realizador da obra.
A imoralidade contrastava com o ambiente rural dos white trash, um lugar tradicional que remete normalmente a momentos de extremo conservadorismo. A escolha do diretor ao contar a história começando com uma filmagem documental é um enorme acerto, pois dá à película um aspecto de veracidade, o que obviamente faz toda a efervescência de insanidade presente na história fazer sentido dentro do universo proposto. A escolha do bom menino Zac Efron para interpretar Jack aumenta ainda mais o escopo de cinismo do filme, assim como a opção pela figura de musa para Nicole Kidman (Charlotte Bless), cinquentenária, decadente, entupida de botox, mas ainda assim, sensualíssima. A dupla formada por Matthew McConaughey (Ward Jansen, irmão mais velho de Jack) e David Oyeleywo (Yardley Acheman) é uma perversão do ideal mostrado em Todos os Homens do Presidente – por Hoffman e Redford –obviamente levando em consideração a tensão racial e os conflitos que a interação entre ele e o mundo poderiam ocasionar.
A câmera, por múltiplas vezes, registra os personagens de uma vista aérea, distante fisicamente deles, no intuito de se fazer notar a diferença entre o pensamento comum e a insana psiquê de cada um dos obcecados personagens. Charlotte é uma tiete de marginais; Jack tem uma séria necessidade sentimental pela senhorita Bless, fantasiando o seu status conjugal de noiva; Ward e Acheman querem chegar ao cerne do personagem investigado – o assassino encarcerado Hillary Van Wetter, interpretado por um desfigurado John Cusack. Dos insanos, ele obviamente é o pior, vide o repertório que o fez ser preso: pelos idos de 28/29 minutos de exibição, ele dá mostras de um pouco de sua insanidade pessoal, pondo em prática seus diálogos sujos que troca com Charlotte através de cartas, e consegue se sujar sem sequer tocar na mulher.
O script é cortado por disfunções comportamentais protagonizadas por quase todos os personagens principais. O eterno desejo de Jack não se concretiza, apesar de ele desejar desfrutar das curvas de sua musa, sem se mostrar um predador sexual em momento algum. O auge do platonismo na relação, e que mais se aproxima do seu tencionado alvo, é o momento em que ele é obrigado a sofrer com uma chuva dourada dela em plena praia, em uma situação no mínimo inesperada.
O clã Wetter, ligado a Hillary, é formado por caipiras de aspecto visual degradante, todas figuras esquisitíssimas, maltrapilhas e de aparência asquerosa ou desleixada. Uma das moças, grávida, é mostrada sem camisa ou roupa de baixo, exibindo sua barriga e partes íntimas no pântano. A possibilidade de anomalia mental parece ser algo que abrange as famílias, tanto os Wetter quanto os Jansen.
As figuras de inspiração de Jack vão caindo diante dele, a começar por seu pai, até o seu irmão, pego em uma situação constrangedora. Quem estende a mão a ele é Charlotte, que está no lugar e momento certos para aliviar as tensões do rapaz. O caçula guarda seus sentimentos e não se entristece com o irmão, graças às suas “preferências”, mas não contém a mágoa por ele ter escondido o segredo de si.
A fotografia de Roberto Schaefer é um primor e a câmera nervosa de Daniels consegue emular as sensações dúbias das conversas após a revelação de Ward. As relações vão ruindo na medida em que o interesse acaba, ligado, é claro, à solução do caso graças ao artigo publicado. Dali em diante, as situações tornam-se ainda mais loucas e doentias. As cenas de “amor” entre Hillary e Charlotte revezam-se entre o violento coito e flagrantes de animais no pântano. Cusack consegue fazer uma das mais demoníacas figuras do cinema atual sem precisar apelar para clichês, e sua insanidade é justificada e plausível graças a toda sua caracterização.
Jack era um menino solitário, sem a presença do irmão que sempre trabalhou fora e com a presença da figura opressora da madrasta. Só se afeiçoaria por Anitta (Macy Gray), a doméstica negra que serviu como para-raio de sua solidão e que por muito tempo foi a única pessoa em quem confiou. No seu pensamento irreal, Charlotte era a princesa encantada, a protagonista do conto de fadas, quem ele imaginava ter uma vida perfeita. Saber que ela estava com o asqueroso psicopata o enojava, o que pioraria evidentemente após saber o destino de sua amada. Na fúria elevada pelo ciúme, Jack se mostra um macho viril, mas tal estado ilusório logo cede com a queda do irmão, sua figura de exemplo. O instinto de sobrevivência rivaliza com a aspiração assassina do facínora e este, após perder tudo, finalmente tem sua primeira vitória sobre o inimigo baseada no único comportamento que conhecia: a covardia.
A película faz apologia ao bizarro e constitui um dos melhores exemplares de filmes que usam o homem como figura monstruosa, tecendo uma possibilidade de futuro nada otimista. O curioso é que o jovem motorista não é tão diferente da nêmese, especialmente no que envolve o nível de isolamento destes do mundo real: enquanto um volta suas atenções para a fria psicopatia sem limites, o outro torna-se um criador de histórias, provavelmente de cunho tão grotesco quanto o que foi narrado em tela.