Pixote: A Lei do Mais Fraco, de Hector Babenco, é um marco do riquíssimo cinema brasileiro não-reconhecido pela maioria que se baseia apenas em Cidade de Deus e Central do Brasil para valorizar, por menor que seja, a produção audiovisual de uma nação que verte toneladas de exemplos culturais superiores. Arrisco dizer que o filme em questão pode rivalizar, enquanto retrato da difícil infância que uma pessoa pode levar no terceiro mundo com o soberano Os Esquecidos, de Luis Buñuel. Um doce período da vida estragado pelas agruras e mil dificuldades tempestuosas que o destino de cada um prepara ao infante, ao longo de uma trajetória repleta de desventuras.
Pois, enquanto Alemanha, Ano Zero, um dos filmes mais tristes que já ocupou uma tela de Cinema coloca uma criança inserida no contexto de uma guerra europeia literal, entre tanques e bombas, a guerra de Babenco é o conflito diário a lá Brasil, esse que lemos e assistimos diariamente nas manchetes e no feed do Facebook: Crianças e adolescentes das nossas periferias virando alvo contínuo da polícia, do emburrecimento e da intolerância institucionalizadas, e delas mesmas. Um mundo de violência(s) cuja imprevisibilidade Babenco incorpora no ritmo da história de uma forma espetacular; realmente gloriosa. Eis, de longe, o seu melhor filme, ainda que bem menos famoso que o polêmico e ambicioso Carandiru, de 2004.
Aos dez anos, Pixote já sabe bater, roubar, se virar; um legítimo membro dos capitães de areia, fazendo aqui referência inevitável ao livro de Jorge Amado, mas ainda guarda alma de criança órfã quando deixa-se descansar sobre um colo de mulher, ou viver a rebeldia exposta no contato com outros da sua idade, compartilhando do mesmo perigo que banha suas condições clandestinas. O menino já sabe matar, só não sabe o que é acordar pra curtir desenhos em um sábado de manhã, ou fazer birra para não ir a escola. Uma infância que vai pelo ralo, prestes a suicidar-se a qualquer momento pelos contornos que o menino adulto vai criando na inconsequência das relações que o mundo e a direção implacáveis de Babenco reservam para a itinerância do moleque meliante.
O cineasta argentino nunca foi tão hábil em nos fazer sentir, com grande força, uma infância com gosto de morte e sem a promessa de se viver a adolescência fora de uma penitenciária. Pixote: A Lei do Mais Fraco pode ser o retrato da construção do que chamam de “perigo para a sociedade”, ainda que a unicidade do filme, sua excelência que não se encontra noutros filmes do tipo se dê pela crueldade deste conto sobre um menino que vê sua pureza escoando a cada momento, e nos reles instantes de sossego, como no seu emocionante contato com a prostituta Sueli, a câmera faz invadir seu rosto já marcado como se o mesmo lembrasse de um tempo almejado para ser criança, mas que a realidade suja dos fatos jamais o deixa tocar com seus dedinhos encardidos.
Assim como no clássico de Buñuel, troca-se as ruas da Cidade do México pelo subdesenvolvimento similar dos bairros de São Paulo. Muda-se o ambiente mas não a lógica da sobrevivência que o estado oferece para sua população, ontem e hoje. O garoto sem nome e sem moral é oriundo e faz mover uma espiral de criminalidade, um ciclo de desistência pelo futuro ainda nos seus primeiros anos de vida, acolhendo o que “Deus” lhe deu como se o mal que o cerca fosse seu amigo, e irreversível. Pixote foi seu apelido, aterrorizando a todos como se todos fossem culpados pelo terror que lhe deu de mamar. Babenco não busca o mesmo, segue imparcial do começo ao fim agindo como grande contador de histórias, e com grande influência do saudoso neorrealismo italiano, cronicando a selvageria dramática que irrompe das civilizações e injetando sobretudo ficção às narrativas de violência que encharcam nosso costumeiro jornalismo pagão.
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