Tirando o elefante da sala: Não.
Na saída de qualquer filme baseado em alguma obra literária, um medo toma conta de todos aqueles que se reconhecem na obra original. O coro é de que o livro com certeza será muito melhor que o livro, que irão alterar tudo aquilo que fazia aquela literatura tão cara ao fã.
É preciso reconhecer que, em geral, o filme deve ser diferente do livro. Há dois motivos principais para fazer esta afirmação, um de ordem técnica e outro de ordem artística:
São mídias diferentes, com necessidades e recursos diferentes
O termo-chave se chama “Especificidade do Meio”, que diz que cada mídia tem possibilidades de expressão particulares, e que assim funcionam a partir de fatores técnicos e artísticos.
Pelo motivo de que livro ou HQ são mídias diferentes do cinema, é necessário romper certas barreiras narrativas que estas peças têm. Enquanto um livro não tem uma metragem recomendada, um filme precisa ser conciso. Parafraseando Alfred Hitchcock, a metragem de um filme deve ser proporcional à capacidade da bexiga do espectador. Devido a essa necessidade, muitas vezes a produção opta por dar diferentes funções narrativas a um mesmo personagem (como o personagem de Liam Neeson em Batman Begins, interpretando Henry Ducard e Ra’s Al Ghul), assim não há a necessidade de desenvolver diversos personagens — o que é importantíssimo, pois aquilo que na literatura pode ficar crível com apenas um parágrafo, no cinema necessita de diversos minutos preciosos — apenas para tratar de necessidades práticas da trama. Desta forma, personagens somem, outros ganham uma relevância maior e começa-se assim a descaracterização da obra original. Mais do que em qualquer outra mídia, a semiótica atua para dar significado e significância àquilo que é assistido, pois apenas assim é possível comunicar-se com o espectador. Há também outros recursos disponíveis como trilha sonora, a cinematografia e atuações, que podem eventualmente satisfazer necessidades. Algo bastante relevante, já que, enquanto o livro tem personagens que podem adquirir configurações e trejeitos bastante específicos em nossa mente, o cinema tem personagens e intérpretes. Esse alto teor de iconicidade do cinema já teria motivos suficientes para que a adaptação comumente se afastasse do livro em diversos momentos.
Assim, como dito no livro Do Texto ao Filme: a Trama, a Cena e a Construção do Olhar no Cinema, o grande erro do espectador é querer ver não só a fábula (a história), mas também a trama (forma como a narrativa é desenvolvida).
Desta forma, citando o mesmo livro:
Ao cineasta, o que é do cineasta; ao escritor, o que é do escritor.
Há duas situações marcantes na adaptação literária ou de quadrinhos ao cinema: quando um produtor ou estúdio possui os direitos para adaptação, e busca um quinhão de fãs já estabelecidos tentando agregar novos fãs que eventualmente usam a literatura como segunda vista da obra. Nestes casos, as produções podem ser um tanto conturbadas, pois é preciso garantir representatividade (O Hobbit não possui personagens femininas, assim, a despeito da execução de seu personagem, elas eram necessárias para identificação do público); Jurassic Park, que tinha diversos contornos machistas no livro, conseguiu transformar-se numa aventura épica familiar e capaz de clamar pela responsabilidade paterna.
Outra situação é quando um diretor tem um projeto específico por ter uma visão específica sobre uma obra. O maior exemplo recente destes é David Fincher, devido à força e qualidade de suas adaptações. Fincher é responsável pela leitura cinematográfica dos livros Zodíaco, O Curioso Caso de Benjamim Button, A Rede Social, O Clube da Luta, Os Homens que Não Amavam as Mulheres e o mais recente, Garota Exemplar. Em todos esses casos há mudanças narrativas, anulação de fatos importantes a trama e omissão de fatos que ficam apenas sugestionados ou que são revelados apenas em determinado momento, e em algumas destas adaptações a resolução da trama foi alterada. É uma temeridade defender que um diretor com ideias tão efervescentes e interessantes quando Fincher resuma-se a fazer uma versão filmada destes livros. E quanto mais autoral for o diretor, mais diferente deve ser a adaptação da obra original, pois tratam-se de obras e manifestações artísticas totalmente diferentes. A literatura tem o poder de garantir um diálogo muito grande com o seu público, permitindo que este imagine e crie muito do que ocorre na trama. Já no cinema, embora possa permitir este diálogo também, aquilo que se vê está lá porque faz parte da visão do seu novo autor (o diretor).
Um exemplo interessante desta dinâmica ocorre com 2001: Uma Odisseia no Espaço. Apesar de roteiro e livro terem sido concebidos simultaneamente, o livro escrito por Arthur C. Clarke opta por esclarecer a visão do autor acerca de diversas questões apresentadas, o que é essencial numa mídia puramente escrita. Já o filme de Stanley Kubrick trata-se basicamente de uma experiência sensorial, aliando imagem e som em uma viagem não-verbal do conceito elaborado pelos autores. Tanto livro e filme, concebidos em paralelo, com participação dos dois autores, são estritamente diferentes, porém igualmente relevantes para o mundo das artes. O mesmo Stanley Kubrick tem em uma outra adaptação literária um manifesto de não-fidelidade, que é o caso de O Iluminado, que não só é sensivelmente diferente da obra original como também é renegada por seu autor, Stephen King. Este é apenas mais um exemplo de que a fidelidade não pode servir como cabresto para a criatividade e visão na transposição de mídias, pois tanto o livro quanto o filme são belas obras.
Enquanto o livro se dá como um experimento mais imediato, filmes são feitos na ilha de edição, nos percalços de produção, no impacto de atuações que deram uma vida maior a este ou aquele personagem, como ocorreu com Tropa de Elite. Sendo o cinema uma arte intrinsecamente coletiva (mesmo em uma obra autoral), dá-se pela junção de diversas visões, recursos e necessidades. Se até mesmo ao analisar roteiro e o corte final do filme é possível ver diferenças gritantes, não há motivos razoáveis para exigir a dita fidelidade em adaptações literárias ao cinema.
Tendo em mente que a qualidade de uma ou outra peça tem relação apenas com sua relevância artística, com uma execução bem feita, com uma ideia bem fundamentada, e não com fidelidade à peça original. O livro não é nosso, e o filme é a visão de uma outra pessoa. Então a melhor alternativa é aproveitar ambos esperando apenas qualidade, e não fidelidade.
Para saber mais, texto sobre as adaptações O Planeta dos Macacos e 2001: Uma Odisseia no Espaço:
As adaptações cinematográficas de “2001: Uma Odisseia no Espaço” e “O Planeta dos Macacos” De Marcela Güther no Medium
Lista de adaptações literárias:
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Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.