Em junho deste ano, os fãs de Hannibal foram pegos de surpresa com o cancelamento repentino do programa, três semanas após a estreia da terceira temporada. Mesmo com uma extensa campanha virtual dos fãs para salvá-la, através da hashtag #SaveHannibal, a NBC não voltou atrás, e seu criador, Bryan Fuller, não conseguiu outros canais que pudessem abrigá-la. O gosto amargo da descontinuação desta vez seria o principal tempero na cozinha macabra do canibal.
Após o massacre que marcou o final da segunda temporada da série, baseada na obra de Thomas Harris, Hannibal (Madds Mikkelsen) é desmascarado e enfim torna-se um fugitivo da polícia, escondendo-se em Florença, na Itália, ao lado de sua cúmplice Bedelia Du Maurier (Gillian Anderson). Como Dr. Fell, seu disfarce em terras carcamanas, Lecter conquista admiração de todos do Studiolo como curador e tradutor da obra de Dante Allighieri. Ao realizar a arguição necessária para atuar na instituição, o ex-psiquiatra, em um belo recurso de fotografia, surge em um púlpito explicando sua tese enquanto uma ilustração do próprio demônio é projetada sobre sua figura, transformando-os em um só. Como estudo, nada mais irônico que tenha sido escolhida a primeira parte da Divina Comédia de Dante, Inferno, como perícia teológica e o propósito de sua estadia no país de origem do poeta.
A terceira temporada destaca-se das anteriores por não só mostrar um período tão aguardado pelos espectadores, a captura do protagonista, dando andamento à cronologia original, como também por ser o extrato mais fiel dos romances de Harris. À exceção de O Silêncio dos Inocentes, todos os restantes tiveram parte de seu universo explorado: Dragão Vermelho, Hannibal e Hannibal – A Origem do Mal. Fomos apresentados à origem de Lecter na Lituânia; a sua fuga para a Itália; à busca de Mason Verger (Joe Anderson, precedido por Michael Pitt) por seu maior inimigo; à estrutura familiar de Will Graham (Hugh Dancy); ao casamento de Margot Verger (Katharine Isabelle), como sempre desconstruído pela produção, e muitos outros. Cada momento específico é rearranjado pela produção em diferentes espaços temporais, desconstruindo a narrativa original de forma não-linear e dando pistas sobre o real e o imaginário. Uma estrutura enfatizada pelo Palácio das Memórias conceituado por Hannibal para armazenar as lembranças mais vívidas que se tornam indistinguíveis.
Dividido em três atos, como em uma tragédia clássica, o terceiro ano comprova por que são necessários tempo e equilíbrio para a construção de um argumento. O primeiro ato, que mantém a tradição de cada episódio intitulado com um prato da gastronomia – italiana, já que se passa neste país – mostra-se extremamente demorado, com sete episódios para alcançar um desfecho: a prisão de Lecter. Já o segundo, após um salto cronológico de três anos, é apressado e turbulento, embora com doses cavalares de expectativa, já que estamos falando de um novo momento na série, a composição do primeiro denso antagonista: Francis Dolarhyde, ou o Grande Dragão Vermelho.
Richard Armitage, cujo maior papel até então fora Thorin na franquia O Hobbit, captou excelentemente o espírito do Dragão e produziu o melhor personagem de toda a franquia. É assustador como o Fada do Dente, como também foi conhecido pela operação de sua captura, se vê como indivíduo para alcançar sua provação. O processo de tornar-se o Dragão Vermelho é o mesmo modus operandi de Lecter como canibal: ambos veem na carne uma transmutação e matam para tornar-se alguém. Tal é a identificação do primeiro pelo segundo que o serial killer procura seu mentor, intentando reconhecimento. Como João Batista batizando o Messias e identificando seu mestre com base em uma paixão mútua: o gosto pela modificação através da morte.
A proximidade, no entanto, não se expande, mas é definitiva para causar estragos. A cena da invasão à residência de Will, afetado pelo caso e pelo retorno ao convívio da amizade destrutiva de Hannibal, possui a mesma carga dramática envolvendo familiares inocentes que a da adaptação anterior, Dragão Vermelho. A aparência de Dolarhyde também impressiona: o lábio leporino, a dentadura e a grande tatuagem da pintura O Grande Dragão Vermelho e a Mulher Vestida no Sol, de William Blake destacam-se na caracterização do personagem e formam sua base destrutiva, como um figurino que veste para conquistar a força do Dragão – o design ideal, como diria Graham. Pontuada não só pela aversão à sua própria aparência, mas também pela intimidação devido ao trauma da figura feminina, a esquizofrenia arcaica do vilão, como tipificação e estudo complexo da psicologia da personagem, demonstra por que Thomas Harris é um romancista de grandes virtudes.
Já o terceiro ato encerra o ciclo entre Will e Hannibal, que enfim retomam os laços negados pelo detetive em um abraço, símbolo maior de cumplicidade, afetuosidade e – por que não? – de amor. Amamos nossos inimigos com a mesma potência que amamos nossas pessoas queridas. O reconhecimento no outro além das nossas diferenças é um ato de amor. Se analisarmos a obra como uma desconstrução do universo apresentado nos livros, o final pretendido produz sentido.
Com tantos núcleos, tramas e subtramas, é uma tarefa difícil avaliar a temporada como um todo, com altos e baixos disputando espaço em 13 episódios que deveriam ser enxutos. Hannibal encerrou-se de forma abrupta para quem esperava, até com um resquício de esperança, uma nova adaptação com Clarice Starling, que ao lado de Hannibal tornou-se icônica. Logo após o cancelamento, houve a vontade explícita de Fuller em produzir um filme com um final para o seriado, mesmo que a ideia contrarie o desfecho e o de seus personagens. Uma pena, já que o final, melodramático e lacrimoso, põe fim a qualquer motivo de espera por novos pratos da alta gastronomia que por ventura pudessem saciar a fome de seus espectadores.
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Texto de autoria de Karina Audi.