A Odisseia se estabeleceu na cultura ocidental como uma das narrativas fundamentais da literatura mundial. Sendo um dos principais poemas épicos da Grécia Antiga, de autoria atribuída a Homero, a trama narra o retorno de Odisseu ao seu lar, Ítaca, após a Guerra de Troia, e inspirou incontáveis produções artísticas ao longo dos séculos, desde peças de teatro a livros, filmes e histórias em quadrinhos.
Zagor, herói do gênero western criado pelos italianos Sergio Bonelli (sob o pseudônimo de Guido Nolitta) e Gallieno Ferri, despontou nas bancas da Velha Bota no começo dos anos 60, consolidando o personagem como um dos ícones do fumetti, temo pelo qual os quadrinhos são conhecidos na Itália. O “Espírito da Machadinha” angariou fãs ao redor do mundo, de maneira que em 2018 completou-se 40 anos desde sua primeira aparição nas bancas brasileiras. Para celebrar a marca, a Mythos Editora publicou uma edição especial de Zagor, na qual apresenta a história favorita de seu lendário criador, Sergio Bonelli, intitulada “Odisseia americana”.
A história, inspirada claramente no texto épico de Homero, coloca Zagor e seu fiel parceiro Chico às voltas com uma perigosa empreitada: acompanhar um rico empresário, Homerus Bannington Júnior, em sua tresloucada expedição ao longo do rio Tallapoosa até o lago Cherokee, com o objetivo de vivenciar uma aventura de tamanho impacto que o inspire para conceber sua própria poesia épica, mantendo a tradição de poetas da família.
A premissa, que soa absurda, é levada a cabo ao longo das 228 páginas, estabelecendo Zagor e a tripulação do barco Athena como partícipes de um jogo de vida ou morte, através de uma jornada recheada de perigos inesperados. O percurso ganha ares épicos ao se desvelar em um ambiente que foge em muito daquilo que conhecemos como “mundo real”. Bonelli e Ferri inserem elementos fantásticos ao longo da jornada, como tribos de gorilas antropomorfos, vulcões ativos que surgem sem mais nem menos, solos áridos que se modificam, criando deslizamentos e nevoeiros que roubam a lucidez até mesmo do mais sábio dos homens. Afinal de contas, não há como se reclamar de emoção nessa jornada!
A tribo de macacos antropomorfos remonta às clássicas aventuras de Tarzan e dos filmes de faroeste, em uma perspectiva claramente colonialista e que animaliza o desconhecido, o “incivilizado”, e dignifica o herói branco, civilizado e libertador. Essa sequência, analisada com as lentes do presente, pode ser interpretada de modo problemático, mas acaba passando batido durante uma leitura descompromissada.
Logo em seguida, temos uma série de absurdos típicos das histórias de fantasia de décadas atrás, quando um vulcão entra em erupção e leva o solo a absurdas transformações que desafiam as leis da física, apenas com o intuito de gerar um deslizamento de pedras extremamente perigoso, que leva os personagens a retornarem às águas do rio Tallapoosa para escaparem daquele terreno inóspito.
O rio, sempre representado à luz do dia, ganha contornos apavorantes ao cair da noite, remetendo a uma espécie de Apocalypse Now, imergindo em uma névoa sinistra, que pouco a pouco leva embora a sanidade da tripulação dos restos do Athena. Contudo, Zagor não é Ben Willard e não sucumbe à loucura, permanecendo incólume diante do perigo, quando ninguém mais poderia salvá-los diante da maldita expedição.
A narrativa de Bonelli é extremamente fluida, o que causa espanto ao constatarmos que “Odisseia Americana” se trata de uma história publicada em 1972. O escritor trabalha muito bem o humor ao longo da trama, dosando bem seu texto, caminhando entre a leveza da aventura pueril e o peso das trágicas consequências dos atos dos personagens. A arte de Ferri obedece aos padrões estéticos da época, fazendo uso de diagramações de páginas rígidas e traços extremamente refinados e detalhados, tornando impossível passar as páginas sem se prender aos quadros para observar a precisão que a arte possui. A dramaticidade contida no traço de Ferri salta aos olhos nas sequências de mortes da narrativa, conferindo peso para os momentos tensos da história, bem como apresentando expressividade e leveza nos momentos de descontração da história.
Ao observarmos a concepção de personagem, percebe-se que Bonelli e Ferri pensaram Zagor como um típico herói clássico, tal qual Flash Gordon, Tex (criado pelo pai de Sergio, Gian Luigi Bonelli), Príncipe Valente, Tarzan etc. Com bondade, inteligência e absurdas habilidades atléticas, o herói virtuoso acaba se tornando um arquétipo comum do meio, o que torna ainda mais criteriosa a análise em cima desse tipo de personagem. Bonelli logra êxito nessa empreitada, apresentando uma excelente história de aventura com ares épicos, inserindo Zagor e sua inseparável machadinha por uma jornada de intensos percalços, nessa odisseia em solo americano.
Publicado pela Mythos, Zagor Especial 40 Anos saiu em capa cartão, contendo as já supracitadas 228 páginas em cores.
Compre: Zagor Especial 40 Anos.