Nova Iorque, 1895. Nesta época e local ambienta-se a história rememorada pela narradora, que a inicia com uma releitura do mito de Moisés, usando a cidade americana como o oásis da perfeição, o lugar onde o rebento do casal de protagonistas poderia viver a despeito de tudo: da deportação de seus pais imigrantes (motivada pela tuberculose) e da irrealidade dos fatos e acasos, que influi diretamente no destino da criança, solta em alto mar e sobrevivendo à tragédia. Há um tanto de fantasia em Um Conto do Destino, de Akiva Goldsman.
As salas palaciais, grandiosas e suntuosas guardam espaço espiritual para que a luz mágica atravesse-as e faça delas cenários semelhantes aos dos clássicos da Disney. Até os personagens são simples, mas não necessariamente vazios, lembrando os arquétipos presentes nos contos infantis. A fotografia de Gary Capo — acostumado a filmes grandiosos, como O Último Samurai, Missão: Impossível 2, Além da Linha Vermelha — flagra ainda mais o caráter de conto de fadas da história amplificado pelos cenários da neve, com cores frias, em contraste com os corpos dos personagens, de cores quentes. A direção de arte de Peter Rogness também é competentíssima, sua experiência em dramas que equilibram emoção e beleza exuberante (Tão Forte e Tão Perto) certamente pesaram na escolha deste para trabalhar no filme.
Peter Lake (Colin Farrell) é o filho da promessa, mas, por ser descapitalizado, tem de roubar para conseguir seu sustento. No entanto, ele em momento algum é retratado com a máscara da vilania, pelo contrário, salienta-se sua necessidade de fazer os crimes ao mostrar a miséria que vivencia e os milagres que o mantiveram vivo. A honra do personagem é tamanha que um alazão branco de capacidades homéricas aceita ajudá-lo em sua jornada — argumento semelhante aos presentes que Perseu recebeu de Atena —, referência que se torna óbvia no decorrer da película. Russel Crowe faz o maligno “deformado” Pearly Soames, o vilão de intenções escusas que busca a morte do injustiçado herói, guardando um poder enorme e uma fúria sanguinária, a qual nem sempre é vista em histórias de princesas. A mocinha é Beverley Penn, feita pela bela ruiva Jessica Brown Findlay (de Downton Abbey), que não parece ter ligação com a nobreza mas cujos desejos e desígnios são ligados à honra e dedicação ao sonho, ao infinito e a um mundo ideal. Mesmo que, a priori, o repertório visual e o roteiro lembrem uma história infantil, a trama não poderia ser mais voltada para o público juvenil e adulto, não por tratar temas espinhosos, mas sim por subverter os clichês de fairy tales e associá-los a questões mundanas, como a guerra de classes.
No pôster do filme, em tradução livre, diz-se que “esta não é uma história de verdade, esta é uma história de um amor de verdade“, como se em nome de mostrar tal sentimento ganhando a vida todo o restante fosse perdoado, até mesmo a filmagem do impossível e a transposição do realismo, pois a poesia do amor é maior que a frágil barreira da verossimilhança. A realidade pode ser enfadonha e desinteressante quando comparada ao incomensurável tamanho do apego ligado ao sentimento eterno. Os exageros dramáticos do casting não são capazes de destoar do espírito da obra, nem mesmo o over-acting de Will Smith que faz o aprisionado Lúcifer, o qual, demonstrando que o mal é reduzido ao menor denominador comum, é levado à fácil associação ao mito maniqueísta cristão.
O desenvolvimento da narrativa é tão articulado aos conceitos básicos da moral contidos nos contos de fadas que seu cunho moralista faz a mocinha sucumbir após entregar-se de corpo inteiro ao amor de sua vida, ato de consequências definitivas. A época pedia um findar trágico que abalou a percepção de Peter Lake sobre a vida, jogando-o num limbo desmemoriado e fazendo de sua imortalidade uma vivência de sofrimento na busca de uma musa que não mais existe.
A trama é levada à contemporaneidade, e a magia do não envelhecimento de Lake só é questionada por uma das filhas dos novos tempos, Virginia — feita por Jennifer Connelly, estonteante como sempre —, a qual não compreende toda a consentaneidade que acometeu a época do início da película, não sabendo como as coisas eram mais simples e menos “discutíveis”. A modernidade destruiu um pouco a percepção do que é possível e do que não é, da possibilidade de milagres acontecerem, mas o encontro entre Lake e ela é o primeiro indício de que tal máxima pode mudar. A tangível condição médica de Abby (Ripley Sobo), a pequena menina cancerosa, também ajuda a derribar a fé de Virginia, mas é este o gatilho que faz Peter Lake retornar às suas atividades como o herói da jornada, levando-o, inclusive, a reencontrar os seus antigos aliados mesmo na urbana Nova Iorque.
A cavalaria de Soames mudou: ele está fortemente armado e paramentado com as tecnologias contemporâneas, e sua obsessão como guardião de limiar, por fazer o destino do herói encantado algo trágico, prossegue. Em determinado momento, parece que o intuito do mal ganharia mais uma vez a batalha, ampliando a aflição e a dor do mágico protagonista, mas, como na maioria dos contos que inspiraram Um Conto do Destino, o final reúne uma mensagem edificante, igualitária e otimista, de amor correspondido e de encontro dos amantes.
A estreia de Akiva Goldsman no cinema é emotiva, mas equilibrada, não caindo no pecado do pieguismo e evidenciando uma história que contém muito das suas influências, enquanto artista, de forma reverencial e enxuta.