Variando entre a triste e duríssima realidade do sistema judiciário brasileiro e o trabalho com uma linguagem pouco comum ao documentário brasileiro, Sem Pena representa um modo pouco usual de contar uma história em documentário, já que não é refém de fórmulas manjadas ou de uma abordagem mainstream de um assunto já deveras discutido.
Realização de Eugênio Puppo, o longa-metragem começa com a fala de um sujeito que foi injustamente acusado por estupro e, por isso, encarcerado, unicamente por se vestir igual ao agressor de uma moça, embora fosse levado em conta o seu testemunho. Casos como esses são muito mais numerosos do que se imagina e do que as autoridades gostariam de admitir.
Um dos diferenciais do filme é mostrado logo de cara, já que os primeiros depoentes dão entrevista, mas não revelam suas faces, buscando priorizar o discurso numa bem sucedida tentativa de universalizar as palavras ditas pelas personagens que se apresentam.
Com o decorrer do filme, outros maneirismos são exibidos, como a filmagem a partir da perspectiva da carabina de um dos guardas de segurança, que fica nas torres vigiando os arredores de um presídio de São Paulo. Mais flagrante ainda são as cenas dentro das repartições públicas, com pilhas e pilhas de cadernos, onde estão nomes e casos de pessoas que foram julgadas, sem qualquer perspectiva de liberdade ou de reabilitação, mesmo aquelas que já cumpriram suas penas.
Das falas mais assustadoras, há uma de um ex-policial militar que assume que há uma quantidade mínima de prisões que ele deve efetuar por período de tempo. Ele afirma que só conseguiu refletir e perceber o quanto isso é péssimo para ele e para a sociedade, quando esteve preso também, após uma difusa investigação de homicídio fora do seu tempo enquanto fardado. A denúncia surge não só para demonstrar a miopia do sistema, que prefere punir a corrigir o erro comunitário, mas também evidencia como pensam os agentes da lei, os braços armados que deveriam servir e proteger o povo, mas que aceitam extorquir e denunciar qualquer um, desde que seja conveniente ao Estado.
A questão de que todo indivíduo é inocente até que se prove o contrário é sumariamente ignorado segundo as investigações de Puppo e de sua produção, ligada ao IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa – que tenciona discutir e consertar essas mazelas e erros de cálculo relativos ao julgamento de réus e do tratamento do preso enquanto parte do coletivo carcerário.
Ao final, a tônica de não ter rostos é quebrada, mostrando a sessão de julgamento de uma senhora, acusada por tráfico de drogas. A cena é tão prodigiosa em sua feitoria, edição e captação de imagens, que a desassociação desses momentos com a ficção tornam-se quase impossíveis, uma vez que toda a verossimilhança é preservada, tendo uma enorme teatralidade impressa em seus esforços. Sem Pena é um produto que carrega em si um cunho de civilidade atroz e que têm o trânsito perfeito entre a informação pura e simples para o público incauto, além da sutileza ligada à arte de contar uma história.