A tradição teatral fundamentada em grandes obras, lançadas através dos séculos e em definições teóricas postuladas, são a base primordial para o desenvolvimento de Grito, nova obra de Godofredo de Oliveira Neto – doutor em Letras pela UFRJ e vencedor do 48º Prêmio Jabuti, em segundo lugar pela obra Menino Oculto em 2005. Situado em um Rio de Janeiro contemporâneo, a obra contrasta a relação de dois personagens de idades distintas cuja ligação explícita é amarrada pelo teatro.
Narrada pela octogenária Eugênia, uma fictícia dama do teatro brasileiro, a obra acompanha o cotidiano ao lado de Fausto, um jovem talento artístico, morador do mesmo prédio que ela, que se torna uma espécie de personagem platônico para a senhora, dando limites ao real e seu imaginário. A estrutura teatral invade a obra dividida em pequenos atos, motivação que centraliza a ação – fator fundamental no drama – e a paixão que compartilham pelo teatro, bem como certa projeção da velha dama pela juventude desejada do garoto.
A narrativa se aprofunda no fluxo de consciência da octogenária, deixando o leitor na margem da dúvida sobre quem é, de fato, o ouvinte da história. Se são memórias relatadas para um amigo íntimo ou uma consciência própria, uma solidão que a desloca da realidade. Ou ainda um costume devido aos anos de profissão, acostumada a viver em voz alta devido às interpretações teatrais. A solidão e a nostalgia do sucesso se ressaltam nas lembranças da personagem e, ao lado do jovem Fausto, transformam o cotidiano em pequenos atos teatrais. Reinterpretando fatos cotidianos como se estivessem em cena e observando a própria vida como projeção ou possível material bruto para uma obra dramática.
São estes princípios que fundamentam a composição híbrida do texto, explorando tanto uma narrativa quanto dando espaço para a cena teatral, movimento que leva o leitor a observar a narradora por dentro, como alguém que vive do conceito teatral e observa a vida como uma espécie de palco contínuo. O estilo misto também garante boa fluidez narrativa, pontuada entre estas cenas e pequenos atos que retomam fatos corriqueiros sob uma vertente metaficional, em que o teatro se destaca como grande arte. Valendo-se do conhecimento adquirido pela formação acadêmica, Oliveira Neto conduz a obra tanto apresentando referências sobre grandes clássicos teatrais como costurando sua narrativa como uma tragédia teatral, inserindo no texto elementos e personagens característicos que eclodem em um final digno das clássicas tragédias de William Shakespere e Sófocles, retomando uma tradição teatral fundamentada em tempos antigos.
Grito promove uma reflexão sobre a potência da arte e de como seus artistas vivem-na de maneira intensa, permanecendo à margem conforme a solidão se adentra ou a carreira entra em crepúsculo, quando a memória se transforma em um símbolo sensível e brilhante diante da realidade obscura.