Se tem algo que a sétima arte é capaz de fazer, é tocar seu espectador. Com a imagem, o som, o texto, uma narrativa tem a capacidade de transcender os limites de alguns dos nossos sentidos, ou seja, ela provoca reações. Para um filme causar reações, sejam externamente físicas como o levantar dos braços em comemoração numa cena triunfante, ou íntimas como o desconforto em uma sequência que lhe incomoda, o filme deve ser ou muito bom ou muito ruim. Ao Cair da Noite (It Comes At Night) é um exemplo ímpar de como a arte do cinema pode tomar conta da sua mente por duas horas e te presentear com algumas sensações, quando os créditos sobem o filme não te deixa, ele fica com você ainda por muitos dias, te fazendo refletir, reagir.
Trey Edward Shults, diretor e roteirista do longa, tem no currículo o incrível Krisha, filme que nos mostra de cara como Trey sabe construir uma atmosfera imersiva e criar personagens tridimensionais e propensos a identificação. Em Ao Cair da Noite, o diretor nos coloca em um futuro aparentemente não tão distante, em que uma doença desconhecida e contagiosa mantém uma família – composta pelo casal Paul (Joel Edgerton) e Sarah (Carmen Ejogo) e pelo único filho Travis (Kelvin Harrison Jr.) – refugiados dentro de uma casa no meio de uma floresta. A “paz” é contrariada quando a família recebe a visita de novas pessoas.
Como em A Bruxa (The Witch), que inclusive é da mesma distribuidora, a A24 – o longa teve um marketing que o vendeu como terror e teve/terá reações decepcionadas de parte do grande público, não que o longa não tenha uma veia de horror, mas aqui o suspense paranoico e sem grandes jump scares é que prevalece. Suspense esse que é arquitetado da maneira mais ambígua possível, enquanto a trama possa parecer lenta e sem grandes acontecimentos, é só observar mais a fundo que percebe-se o quão complexo e alarmante é o caminho que a trama segue, deixando com que o silêncio se case com uma trilha musical singular, a fotografia escura e composta por sombras e silhuetas dê às cenas incríveis pontos de vista, e que as personagens pareçam críveis.
Acompanhamos a trama pelos olhos do adolescente Travis, e como Shults trabalha os impactos de um “pós-apocalipse” na vida de um jovem é genial, mais do que tudo soa sincero e corajoso. Harrison Jr. entrega a atuação mais tridimensional com seu Travis, o personagem tem constantes pesadelos e isso vai tomando dimensões cada vez maiores e é neles que o filme abusa um pouco mais de seu viés do horror e do suspense. É através do garoto também que o longa expõe as relações de suas personagens, desde o cachorro Stanley até o pequeno Andrew (Griffin Robert Faulkner).
Dando o tempo que sua história precisa, Ao Cair da Noite é como uma fragmento no tempo, nem um pouco preso em obrigações de se explicar tudo, o filme não subestima seu espectador e soa como uma das muitas tristes histórias que o universo do longa abriga. É uma aula de construção de expectativa, ambiente e personagens, além de ser impecável nos responsáveis pelo filme causar tantas sensações: imagem e som. É um casamento perfeito. Shults entrega um daqueles filmes memoráveis, que te faz ficar inquieto na cadeira do cinema, que te faz torcer e criar fortes relações com o que se vê em tela mesmo que seja um sentimento inevitavelmente pessimista levando em conta tudo que já se viu. É de provocar reações, é de ser como um peso que você carrega nas costas quando sai do cinema. Pesado. O trabalho de Shults é a confirmação de que o terror e suas variáveis está em alto nível e de que seu diretor é uma das promessas dessa nova geração.
É de sair do cinema e se enxergar como humano, e falho. Ao Cair da Noite é desses.
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Texto de autoria de Felipe Freitas.