Com a mesma faca usada na morte da galinha que abre o filme original de Fernando Meirelles, Cidade de Deus: 10 Anos Depois inicia-se. A narração de Alexandre Rodrigues, comum em documentários e na ficção, explora como foi o desenrolar da carreira artística de cada um dos integrantes do elenco e a produção do sucesso Cidade de Deus, focando nos moradores do complexo comunitário da Zona Oeste do Rio de Janeiro, em quem permaneceu no mesmo local.
Leandro Firmino da Hora é o primeiro “personagem” analisado, muito além do seu Zé Pequeno, quilos mais pesado e anos mais velho. A confissão de que jamais sonhou seguir carreira artística é surpreendente, especialmente por sua condição de negro e morador de favela. A situação de que a comunidade era uma questão cult se deu a partir de 2002 com o lançamento da obra, passando a nortear a enorme diferença entre a realidade dos envolvidos, do sucesso meteórico, e a volta para suas casas paupérrimas, realidade, segundo os depoentes, digna de choro.
A crueldade do meio artístico é flagrada na fala de Roberta Rodrigues e de Jonathan Haagensen, que lembram as terríveis dificuldades que tiveram ao tentar solidificar a carreira como atores, algo raro mesmo dentro do talentoso elenco do clássico instantâneo. A crueza da fama é ainda melhor mostrada na face de Alexandre Rodrigues, quase sem maquiagem, onde cada sinal de imperfeição é muito bem pontuada, e que em cujas falas mais se demonstra o arrependimento por não ter aproveitado, como deveria, a fama repentina.
Os contatos dos diretores Cavi Borges e Luciano Vidigal fizeram possível o encontro com astros como Seu Jorge, mas os esforços são muito melhores vistos ao investigar como a rotina de pessoas absolutamente anônimas, como o ex-ator Felipe Paulino, cujo papel pequeno, o do menino que tem o pé alvejado por Zé Pequeno. Felipe fala timidamente sobre suas cenas, intercalando com os momentos de seus trabalhos e bicos como servente de um hotel. Confuso, o jovem faz fortes declarações a respeito de sua aposentadoria, inclusive uma polêmica envolvendo o dinheiro que recebeu e quem supostamente o gastou. Apesar dos reclames, de fato se demonstrou que o cachê dos atores foi muito pequeno, variando entre os quatro dígitos de reais para os personagens secundários e pouco mais de dez mil para os protagonistas e antagonistas.
Apesar de louvar carreiras promissoras como as de Alice Braga, os depoimentos mais interessantes são os que revelam o drama de Rubens Sabino, que fez o personagem Neguinho e sofreu enormes dificuldades na vida, ficando conhecido um ano após o lançamento mundial. O motivo da “re-fama” foi devido a um assalto que cometeu e que, claro, deu errado, causando sua prisão e a reputação de contraventor.
As filmagens, realizadas no começo dos anos 2000, aparecem como introdução a discursos emocionantes dos meninos que foram obrigados a amadurecer muito rápido, passando na maioria das vezes a serem os provedores de renda de suas casas. O momento de Darlan Cunha e Douglas Silva após o longa-metragem e o seriado Cidade dos Homens, que foi ao ar entre 2002 e 2005, também é focado. Um efeito semelhante ao tencionado por Linklater em Boyhood – Da Infância à Juventude, com a trajetória de Douglas, que teve de se reinventar e que nadou contra a corrente de seus companheiros, visto que a maioria não teve qualquer sucesso nem em carreira artística, nem em vínculo empregatício.
O rumo das falas lembra a pouca abordagem sobre a vida do negro sendo contada por pessoas negras, quase sempre representados por estereótipos de bandidos desorganizados, como uma inversão do conceito de bom selvagem, um ser irracional, desorganizado e agressivo. A condição de apartheid é comum entre as seleções de casting, raramente contemplando papéis comuns em profissões como advogados, médicos e engenheiros. A fuga do arquétipo de envolvido no “movimento” reflete-se no drama de muitos negros, entre eles Jefechander Suplino, que viveu Alicate, curiosamente invertendo o estigma de conversão do seu personagem, tornando real a ficção que viveu, visto que está desaparecido até a produção do documentário. A realidade do ator é a mesma de muitos outros jovens negros, quando não, chacinados pelo poder paralelo ou pelo Estado.
A ideia de reunir as falas dos que fizeram parte de fenômenos que mudaram completamente o panorama da favela de asfalto é ímpar por resgatar os momentos não contados, até então, dos que não tiveram tanta sorte quanto os famosos “globais” e conhecidos internacionalmente. É no drama que mora o principal adjetivo positivo deste Cidade de Deus – 10 Anos Depois, uma realidade que ainda exclui o preto e o pobre, mesmo quando o indivíduo teve seu momento ao sol. Nem os lembretes textuais das iniciativas de praças artísticas oriundas das favelas cariocas conseguem mudar a sensação de que falta oportunidades a essa classe, exemplificada na demora em distribuir o documentário em questão para o circuito comercial, fazendo deste um evento de quebra da quarta parede, que retrata o tema discutido no roteiro.