Se o Orgulho e Preconceito de 2005 (filme de ‘inhos’: lindinho, certinho, e muito mais bobinho que o astuto livro de Jane Austen, mas acerta por não tentar ser o novo Barry Lyndon) aposta no poder do casamento entre palavra e visual clássicos e simbólicos, a soma de Austen, a escritora do belo romance de 1813, com The Walking Dead já avisa, tal em Sangue Negro, que a leveza dos campos ensolarados será inevitavelmente tingida de vermelho, cedo ou tarde*. O problema é que na sátira de 2016, sangue é jorrado tão vulgarmente quanto as influências de um dos filmes mais confusos do ano: Ao invés de se espelhar nos melhores exemplares de um sub-gênero que infecta tudo, hoje em dia, tal o ótimo A Noite dos Mortos Vivos, de 1968, deixa para se apoiar no grotesco e na banalidade da violência que a série da AMC tanto abusa, talvez para cativar um público que já não liga em assistir miolos e outras nojeiras explodindo. George Romero não queria isso, o rei dos zumbis não perderia seu valioso tempo com amálgamas que só tornam inferior seu legado de horror e terror artístico; qualidade essa que Orgulho e Preconceito e Zumbis, longa baseado na obra de humor de Seth Grahame-Smith, tenta bravamente ao menos cutucar, mas surpreende nem mesmo suas traças por não conseguir o mínimo alcance almejado.
*nota-se a observação, acima, pois o “cedo ou tarde” simplesmente não existe, ou seja não há nenhuma busca pelo refinamento de uma trama que dialoga com conceitos ancestrais pré-globalização (a valorização da linhagem familiar) e atuais (a banalização violenta da vida humana, com pais matando filhos e vice-versa nos noticiários). Logo no começo, sente-se o paradoxo que esse paralelo não pode funcionar, numa época que não combina com a violência inevitável em torno de uma pandemia contra cavalheiros, donzelas e suas relações quase virginais. Assim, inserir zumbis nessa fórmula mais do que clássica (e clichê, de tanto que foi repetida) não revitaliza nada, e ao invés de passar verniz em mobília velha, acaba invalidando qualquer intenção de paródia ou antítese ao material original. Não à toa, o filme demorou demais para ser produzido, já que os produtores previam o desastre que estava a caminho.
Não que o desastre profetizado (e ensaiado) de fato aconteça, posto que a diversão, pelo menos, é quase garantida para uma plateia que não se interessa no drama emocional de donzelas virgens assistindo o pôr-do-sol em pastos viçosos. Mesmo assim, tanto no belo filme de 2005 quanto neste, os discretos charmes e absurdos da burguesia sobrevivem, postulando uma seriedade que em Orgulho e Preconceito e Zumbis torna-se um tiro no pé para uma versão que tenta apostar na sátira, e é incapaz de fazê-la acontecer. Por exemplo: Se na história de origem, as cinco irmãs (a maioria insuportável) da família Bennet são cultivadas para se casar, unicamente, e assim viverem “felizes para sempre” com seus pretendentes, aqui elas vão à luta desde o começo, quase que perfeitas amazonas, matando seus mortos-vivos que, na melhor das hipóteses, podem representar suas gaiolas, seus donos e tradições crônicas que as enjaulavam, sob vestidos, silêncio e regras sociais britânicas ultra-rígidas. Metáfora bacana, mas super mal aproveitada.
Mesmo esse empoderamento feminino, aqui, é subvertido pela deselegância que a violência, não apenas traz, mas sobretudo do jeito que é mostrada e até celebrada, cuja importância vital para (o fiapo d)’a trama gira em torno de momentos constrangedores, como os conflitos amorosos (ninguém liga, cadê os zumbis?!), ou a teoria do livro do apocalipse, quando o filme tenta nos fazer entender os motivos de uma pandemia zumbi no século XIX (oi?), e francamente: Esclarecimentos num filme satírico colam tanto quanto o desempenho do elenco; Sam Riley como Mr. Darcy vai atualizar sua concepção de ‘ridículo’, no mesmo ano que tivemos o palhaço do Jared Leto. Entenda como quiser… Salpicado por poucos momentos de honestidade sobre o que a obra, realmente, poderia vir a ser (sob a tutela de uma visão e condução melhores), uma saudade certamente se acentua e cresce quando percebemos o peso do equívoco na tela: Planeta Terror, de Robert Rodrigues. Foco na premissa, foco na abordagem, e de repente a soma dá certo. Não é mágica, mas um filme bom faz parecer que é.
E dane-se a coerência do título com a obra, não é mesmo? O absurdo aqui não vem da situação, portanto, mas de como essa é desenvolvida, beirando o ofensivo; beirando a vergonha e a falta de bom-senso. E eu nem citei como tudo parece uma versão piorada dos terrores medievais do mestre Mario Bava… Mas, afinal, Orgulho e Preconceito e Zumbis é mais romance, mais drama ou terror estilo gore? Nenhuma das coisas, é lógico, e há até episódios superiores de The Walking Dead (da 1ª temporada, é lógico²). É, bem antes do final, uma reles salada mal-temperada de intenções irregulares que, inevitavelmente, só não irá direto para o inferno das paródias que saíram pela culatra de sua investida no Cinema, pois será alvejada no purgatório das ridicularizações de crítica e público, esse segundo cada vez mais atento e crítico, idem, já que aqui nem os figurinos deslumbram ninguém – o que é aquele tapa-olho na coitada da Lena Headey, diva de Game of Thrones? Conclusão: O preço do aluguel anda desumano.
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