Filmes sobre a Ditadura rendem uma boa discussão, ainda mais nos últimos tempos, e Pastor Claudio é um documentário de Beth Formaggini que é cirurgico ao analisar uma figura controversa, Claudio Guerra, o Pastor Claudio, que participou das sessões de tortura e para discutir o processo do filme conversamos com a diretora, com exclusividade;
Vortex Cultura: Desde quando o projeto foi pensado e quando começou a ser produzido?
Beth Formaggini: Quando saiu o livro Memórias de uma Guerra Suja, de autoria de Rogério Medeiros e Marcelo Netto, com depoimentos do ex-delegado do DOPS Cláudio Guerra em 2012, comecei a pensar em Ivanilda. Cláudio confessa no livro ter assassinado e ocultado corpos de militantes mortos na Operação Radar e no meu longa anterior Memória para Uso Diário Ivanilda Veloso procurava o marido desaparecido, Itair José Veloso, assassinado na Operação Radar. Então, pensei que ele talvez pudesse esclarecer o paradeiro de Itair e resolvi fazer o filme. Para mim Ivanilda encarna um dos “gritos” dentro do filme, ela pergunta para Cláudio, através de uma projeção, onde está seu marido, um dos poucos momentos que faz o pastor gaguejar. Fazer aparecer, dar visibilidade e “dizibilidade” aos agentes invisíveis e até hoje impunes que agiram nos porões da ditadura é gritar de outra maneira, porque é dar a ver e a ouvir essas ações por si mesmas gritantes e escondidas debaixo do tapete.
VC: Em outras tantas entrevistas de Cláudio Guerra se mostra como um sujeito frio, calculista e repleto de detalhes são seus relatos, no entanto, em seu filme foi ao meu ver o melhor depoimento dele. Foi difícil pra você enquanto cineasta e para Eduardo Passos enquanto entrevistador conversar com ele? Em algum momento ele esboçou alguma reação diferente do que se vê dele em tela?
BF: Cláudio foi um assassino responsável pela morte e incineração de pessoas desaparecidas que se opunham à ditadura brasileira apagando as marcas da violência do estado. Na volta à democracia, trabalhou na segurança pública replicando os métodos do passado e cometeu ainda outros assassinatos comuns. Suas motivações variam entre o orgulho em ser um cumpridor de ordens competente, um servo leal da luta contra o comunismo, o prazer de ser temido e o amor ao poder e ao dinheiro. Ora é um cristão arrependido, ora um assassino orgulhoso de seu trabalho.
Neste filme me propus a enfrentar o que para mim era claramente o inimigo, criando um dispositivo que permitisse a ele se confrontar com sua própria história. Propus uma conversa entre Cláudio e Eduardo, um psicólogo clínico durante a qual se projetam imagens de seus parceiros e vítimas nos permitindo ver a vinculação de Cláudio com a violência do estado praticada naqueles anos, além de perceber a sua frieza aterradora. Tratar o tema da violência do Estado entrevistando um agente da repressão foi uma tarefa muito difícil. Quando chamei o psicólogo Eduardo Passos para conversar com Cláudio Guerra queria alguém que fosse capaz de escutar, mas também que fosse um militante dos direitos humanos. Queria que ele trouxesse o personagem para dentro do filme e o convidasse a construir conosco o seu retrato, mas que tivesse uma posição a favor dos direitos humanos. Também optamos por não colocar Guerra no paredão, mas em nenhum momento Guerra ou o público deixaria de saber o lugar de onde falávamos. Em sua entrevista ao Forumdoc, Jean-Louis Comolli, autor de Ver e Poder nos orientou: “É preciso odiar o inimigo, sem dúvida, e combatê-lo sem piedade, mas para isso é preciso compreendê-lo e poder contar a história que é dele e que ele não conta.” Que nenhum deles conta. E não foi nada fácil essa convivência.
VC: Imagino que a época que foi exibido Pastor Cláudio nos festivais, não se tinha noção completa de como seria o rumo das eleições federais. Como você acha que seu filme conversa com o futuro e presente político e que tipos de repressões descritas por Claudio Guerra poderiam se repetir na atualidade tendo em vista que os anos 2010 são diferentes de 1960/70?
A grosso modo a mesma elite brasileira que forjou o Golpe de 64 e o sustentou por mais de 20 anos está hoje no poder. É claro que o que vivemos hoje é muito mais complexo e que mais de 50 anos se passaram mas não caberia me estender aqui. Não é por acaso que o atual presidente homenageia Ustra, um dos maiores assassinos e mais cruel torturador do regime militar. Nosso filme deixa claro que o que ocorreu em 64 foi um golpe civil, empresarial e militar que contou com o apoio de ruralistas, banqueiros e empresários, mas também de grande parte da sociedade que fingia não ver os crimes que eram cometidos. Quando Cláudio fala no filme que estes grupos são os mesmos de ontem e que estão se articulando para voltar ao poder o filme ganha uma atualidade impressionante, ele prenuncia o que virá a ocorrer dois anos depois.
VC: Como foi a preparação de Passos para conversar com Cláudio? Ele fez algo diferente ou especial?
BF: Jean Louis Comoli nos ensina que se você quiser filmar o inimigo deve trazê-lo para dentro do seu filme. Nós nos preparamos muito para enfrentá-lo. Assistimos e debatemos muitos filmes junto com Marcia Medeiros, a montadora que depois somou-se a Julia Bernstein na montagem com a consultoria de Marta Andreu. Assistimos a documentários como Teodorico, O Imperador do Sertão, de Eduardo Coutinho, onde ele “cede a palavra” para um “coronel” nordestino dono de terras, de gentes e da política local. Os filmes Duch, Le Maîtres Des Forges De L’enfer e S21, de Rithy Panh também foram muito importantes para a construção de um ethos da entrevista no filme. Neles o documentarista cambojano Rithy Panh dá passagem à narrativa dos violadores de direitos humanos no Camboja trazendo à tona uma visão aterrorizante da história. Eduardo destaca a importância de fazer aparecer estas violações enunciadas pelo próprio violador também como uma forma de resistência.
Assistimos muitas entrevistas dos agentes da Ditadura no site da Comissão Nacional da Verdade, lemos Hannah Arendt e os estudos sobre a ditadura nos anos 70, discutimos muito as entrevistas anteriores de Cláudio e preparamos uma pauta muito precisa. Mas ao meu ver a prática da psicologia clínica de Eduardo teve um papel muito importante.
VC: Depois de ter trabalhado em um filme cujo foco narrativo é na fala de um homem que colaborou demais com o regime civil militar, e de ter tido contato pessoal com o mesmo, como você pessoalmente enxerga a digestão que ele fez do passado? Acredita que ele está realmente arrependido ou que é algo da boca para fora, movido por obrigações religiosas?
A conversão de Cláudio e sua decisão de contar a sua versão dos fatos não foi assunto de nossas conversas. Nosso foco foi realmente a recuperação da memória sobre a repressão que se abateu sobre o Brasil naqueles anos e a sua repercussão nas práticas de desrespeito aos direitos humanos no período de exceção até os dias de hoje. O resultado do dispositivo criado pelo filme é nos colocar em presença não só de Cláudio mas de toda uma engrenagem que atuou na Ditadura Civil Militar e continua ativa até hoje, usando as milícias e esquadrões da morte como ferramenta, vide casos como a assassinato de Marielle e Anderson, ou o desaparecimento de Amarildo, além das inúmeras lideranças indígenas e camponesas assassinadas no país.
Este jogo de cena que Cláudio concorda em jogar conosco nos permite não só reconstruir este período terrível da história do Brasil, mas também ver a vinculação de Cláudio com a violência de Estado praticada na ditadura militar. Também vemos a sua frieza aterradora. O filme nos faz sentir que este terror faz parte de nossa vida cotidiana dentro de uma total normalidade. O que ocorre em Pastor Cláudio é algo inesperado. O que me passou e que acho que poderá passar com o público é surpreendente. Nos damos conta que o monstro também é uma pessoa. Esperava ver um monstro com chifres e rabo e encontrei uma pessoa e este fato nos faz pensar na banalidade do mal como algo que vivemos cotidianamente. Assim, vemos diariamente notícias das mortes de jovens assassinados pela polícia e a sociedade não se rebela contra esse genocídio. Sabemos que presos são torturados e poucos se importam e se mobilizam. O mais grave é que estas poucas vozes estão cada vez mais em risco nos dias de hoje. A violência dos homens e do Estado continua a nos assombrar no Brasil e no mundo onde a vida humana já não vale mais nada. O filme nos faz viver esta experiência aterradora pois também nos põe um espelho diante dos olhos.
VC: Qual é a sua visão particular sobre o personagem que é o Pastor Claudio? Você acha que há alguma criação consciente do personagem ou você acha que Claudio Guerra é realmente quem aparece no seu filme?
Com este filme decidi enfrentar o que para mim era claramente o inimigo. Para isto encontrei um dispositivo forte que permitisse que Cláudio se encontrasse com sua própria história. Lhe propus uma conversa com um psicólogo durante a qual projetava imagens de arquivos da Comissão da Verdade, fotos de jornais, notícias e filmes relativos à sua trajetória.
Quando um personagem depara-se com um dispositivo fílmico ele se transforma não só num ator mas também em um autor que cria o seu autorretrato para o filme desenvolvendo uma narrativa sobre si próprio, uma performance. Seria ingênuo acreditar em verdades neste caso, mas às vezes no discurso, nas palavras e nas suas frestas aparece alguma coisa próxima do real. Embora ele tenha criado este personagem frio e monocórdio, Cláudio reage com orgulho dos seus atos quando fala que tem mais credibilidade do que seu opositor que o contradiz porque o outro apenas ouviu falar dos crimes de ocultação de corpos, mas ele – Cláudio – foi o autor destes crimes. Chega a repetir três vezes: “Eu, eu, eu fiz!” Para nós o momento fílmico é o que importava, o “jogo de cena”, como diria Coutinho, que é jogado naquele momento. O filme capta esse “tempo presente” de interação entre Cláudio com o psicólogo e com as imagens projetadas.