Circo fantástico de engrenagens incongruentes
Respeitáveis leitores, O Circo Mecânico Tresaulti, de Genevieve Valentine (Darkside Books), é um livro de fantasia ambientado durante um período de guerra. Não se trata de uma distopia (aos fanáticos por conspirações), mas de uma história em que componentes mágicos de caráter lúdico coexistem despercebidos ao conflito. De forma geral, a narrativa não alcança pleno entretenimento por conta de incongruências que saltam aos olhos de uma boa leitura.
Valentine utiliza dois narradores: um em terceira pessoa, ou narrador-observador, e outro em primeira pessoa, ou narrador-personagem, o segurança e faz-tudo do circo, George. Aqui começam os primeiros deslizes. Utilizar dois narradores é sempre um desafio por conta da alternância de vozes; ou seja, fica fácil do leitor confundi-los se eles não possuem características distintas ao contar a história. E eles não têm.
Trocando em miúdos, o livro começa dando a entender que George está escrevendo um diário sobre o Circo Tresaulti e os espetáculos, mas logo nos deparamos com cenas detalhadas em que ele não está presente. Ou seja, não fica explícita a troca de narradores porque os dois soam idênticos. Assim, por vezes algumas passagens dão a entender que George está falando dele na terceira pessoa, ou que tem algum poder de adivinhação não explícito na trama.
Enfim, vá lá que George além de ser segurança também faça bicos de médium, poderia ser uma incongruência para não despertar muito incômodo ao leitor menos preocupado. Dirão que o leitor quer trama, entretenimento. Para este leitor, em síntese, o livro acompanha as apresentações do circo, mas não em caráter temporal, ou seja, os capítulos são intercalados entre presente e passado. Por vezes estamos lendo sobre o que acontece no presente, e de repente George fura a continuação da história para tratar sobre eventos antigos, sobre os velhos artistas que passaram pelo circo ou sobre figurino, música de apresentação, roupa etc.
Pessoalmente, acredito que faltou um pouco mais de parcimônia em utilizar o flashback para aprofundar os personagens, pois o enredo do presente não caminhava a qualquer intensidade ou desenvolvimento da trama (principalmente na metade do livro). O passado pesa ao circo mais que o presente, contudo não é suficiente para manter a leitura em expectativa constante.
Quanto aos personagens, por serem muitos, é natural que apenas uma parte merecesse atenção dos narradores (outros tiveram o passado reduzido a quatro ou cinco linhas). Mas vá lá, dirá algum leitor, que realmente não nos interesse o passado de personagens secundários como por vezes nós, pessoalmente, deixamos de conhecer quem habita o nosso cotidiano, a pergunta é: os mais citados carregam o livro? Aqui cabe outra dúvida porque a personagem principal, Boss, a matrona que capitaneia o circo, é cercada de mistério.
Boss foi uma cantora de ópera antes da guerra começar. Mas não era uma principal, apenas secundária. O maior papel dela foi a assistente da rainha na ópera Rainha Tresaulta. É narrado que na noite de um espetáculo a cantora principal encantou os presentes a tal ponto de silenciá-los. No momento seguinte uma bomba estoura no teatro e mata todos, exceto Boss. Ela se ergue no meio dos escombros e, carregando pedaços de instrumentos dos músicos mortos, cria para si um assistente mecânico, um homem (ciborgue?) composto de vários instrumentos que futuramente encarna o arauto e orquestra-de-um-homem-só do Circo Tresaulti. Não é dito o que ela emprega para criar o servo, apenas que a “habilidade” desperta e, por conseguinte, Boss adquire o poder de implantar engrenagens nos corpos das pessoas.
Com esse poder, Boss incrementa os artistas do próprio circo: aos acrobatas e malabaristas implanta ossos ocos e articulações de metais para os deixarem mais leves e fortes; implanta engrenagens para força e braços mecânicos em outros; engrenagens diversas dependendo dos casos que aparecem; e cria um par de asas mecânicas que implanta em um artista especial.
Uma vez recebidas essas próteses, os artistas não podem se distanciar de Boss, porque sugere-se que ela cria um vínculo com as engrenagens implantadas, as quais podem parar se não ficarem perto da dona. Boss também pode consertar os artistas e as engrenagens, chegando a ponto de ressuscitá-los (você não leu errado). Isto é o Circo Tresaulti: artistas-meio-ciborgues-meio-imortais.
O antagonista da história é o “homem do governo”. Basicamente ele quer recrutar Boss para que ela utilize a sua habilidade nas tropas em guerra para criar soldados-ciborgues-meio-imortais. Enquanto isso não acontece, o circo sobrevive levando certa esperança nas cidades em guerra. Isto ainda é uma resenha sem spoiler.
A despeito da trama do circo-meio-ciborgue-meio-imortal espalhando esperança no mundo contaminado com bombas e guerra, a autora dá pouca ênfase ao cenário e muito aos personagens. Mas, apesar de alguns bem construídos, como dito acima, por vezes os artistas do circo se mostram vagos, com ações simbolistas, alguns diálogos muito parecidos em que não distinguimos uma personalidade por trás do personagem. Mesmo George, o narrador-personagem, por vezes fica mais preocupado em criar insinuações que contar o desenvolvimento da história.
Na literatura, é uma tendência contemporânea deixar sugestões na narrativa como forma de simular a experiência de vida de quem lê, mas em excesso, como George utiliza sugestões para endossar o comportamento rude ou violento de outros personagens, é apelar demais para a complacência do público, e, ao mesmo tempo, se eximir de contar fundamentos da história. Novamente houve falta de parcimônia da autora.
As ilustrações presentes no livro são muito bem feitas e transmitem uma atmosfera meio decadente com enlaces de esperança aos integrantes do circo. A edição da Dark Side é muito boa e encontramos um ou outro erro de revisão que não tem o poder de prejudicar muito a leitura. Ao fim, a impressão é que O Circo Mecânico Tresaulti é um espetáculo pela metade onde as engrenagens presentes nos personagens faltaram à história.
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Texto de autoria de José Fontenele.
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